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Na paisagem
dominada pelos mendigos, prostitutas e deserdados, juntaram-se
as mais variadas tribos urbanas
Gilberto Gil participou em São Paulo, na quarta-feira
passada, de um almoço para criar um espaço de
experimentações em um estacionamento na região
mais deteriorada da rua Augusta -ali se apresentariam gratuitamente
músicos, poetas, artistas plásticos, designers
de moda e atores dispostos a fazer inovações,
tirando proveito das mídias digitais. O encontro teve
um sabor de futuro combinado ao de nostalgia.
A experiência está sendo tocada por Cláudio
Prado, guia dos então exilados Caetano Veloso e Gilberto
Gil, entre outros baianos, pelo mundo underground londrino.
No final dos anos 1960, Cláudio saiu do Brasil para
estudar pedagogia na Suíça, mas preferiu ser
hippie em Londres e aprendeu os caminhos dos melhores endereços
das trilhas do rock. O aprendizado fez dele, no Brasil, produtor
de shows e de bandas como os Mutantes, a Cor do Som e os Novos
Baianos.
Seduzido pela internet, atuou como um conselheiro em mídias
digitais do ministro Gilberto Gil, que agora é chamado
ao projeto na rua Augusta, até pouco tempo atrás
dominada, na noite, por travestis, prostitutas e os mais variados
tipos de marginais. Num casarão antigo, vizinho ao
estacionamento, pretende-se montar um laboratório voltado
ao desenvolvimento de projetos de internet. "Queremos
liberar as energias utópicas da pauliceia desvairada",
propõe Cláudio, descendente de uma das mais
tradicionais famílias paulistanas.
Não dá para saber ainda o que vai sair dessa
busca das energias utópicas. Mas posso dizer que esse
tipo de movimentação mostra que, ao comemorar
hoje 455 anos, São Paulo tem naquele trecho da Augusta,
uma rua 24 horas, sua melhor síntese.
As antenas de Cláudio localizaram ali a melhor amostra
da diversidade paulistana, o que vem ocorrendo nos últimos
cinco anos -aliás, não conheço nenhum
lugar do mundo com tantas tribos diferentes em tão
pouco espaço.
Na paisagem dominada pelos mendigos, prostitutas e deserdados,
juntaram-se jovens da classe média e alta atraídos
pela baladas; apreciadores de novos grupos da música
brasileira (Studio SP); as mais diferentes modalidades de
gays e lésbicas, com bares para diferentes idades e
faixas de renda; a rua reserva espaços para os emos
e diversos tipos de punks (há uma tribo de punks que
prega a paz e a alimentação vegetariana). Os
cinéfilos já estavam lá há mais
tempo por causa do Espaço Unibanco, depois apareceram
bares que atraíram intelectuais e jornalistas.
Logo no começo da rua está um símbolo
do paladar da família paulistana (a Famiglia Mancini),
com sua fila de netos acompanhados de avós.
A poucos metros dali, concentraram-se grupos de teatro alternativo
em torno da praça Roosevelt; o prefeito Gilberto Kassab
me assegurou, na semana passada, que no próximo mês
começa a concorrência para a reforma da praça,
que teria uma vocação para as artes cênicas;
José Serra se comprometeu a inaugurar uma escola voltada
à formação de mão-de-obra qualificada
para montar peças.
Para completar a biodiversidade, estima-se que a nova praça
será inaugurada com a sala do Cultura Artística
-espaço que foi destruído por um incêndio.
Uma das cenas exóticas da paisagem paulista era a mistura
dos públicos na saída do Cultura Artística,
com homens e mulheres de roupas sóbrias entre os frequentadores
de um inferninho chamado Quilt -o que, em inglês, significa
colcha de retalho.
A utopia urbana não está só na diversidade,
mas no fato de que o melhor futuro de São Paulo é
a economia criativa, que vai da moda, passando pelas artes,
até programas de computador.
Na mesma semana em que Gilberto Gil discutia como fazer de
um estacionamento um centro de inovações, víamos
os desfiles da São Paulo Fashion Week, juntando as
mais diferentes inteligências estéticas -essa
inteligência produz não apenas modelos de roupas,
mas idosas na passarela ou um desfile movido pela Orquestra
Sinfônica de Heliópolis. Ao mesmo tempo, milhares
de jovens mostravam suas invenções no Campus
Party, a maior feira brasileira das tribos digitais.
No Campus Party, lançou-se, por exemplo, o projeto,
idealizado pela TV Cultura, de colocar nos computadores das
LAN houses um recurso para que os jovens, enquanto jogam,
possam ter acesso a ofertas de educação e cultura
bancados por governos, empresários -a ideia é
disseminar por todo o país esse mecanismo, envolvendo
entidades como Sebrae, Sesc, Sesi, além das secretarias
e dos ministérios da Cultura, Educação
e Trabalho.
Nessa comemoração dos 455 anos, dá para
dizer que, em meio ao nosso caos, há cada vez mais
efervescência e criatividade -e, por isso, está
ali naqueles projetos de energias criativas da rua Augusta,
onde até pouco tempo parecia não ter nenhuma
perspectiva, a síntese de um futuro de cidade.
PS - Para tentar captar esse clima, sugeri a um grupo de fotógrafos
que documentassem 24 horas daquele trecho da Augusta. Coloquei
uma seleção das fotos neste
link.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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