Samuel
teve um sonho que o projetou para a vida de escritor. "Sonhei
que alguém estava arrancando meu coração.
Aposentado, ex-cobrador de ônibus,
o migrante nordestino Samuel Salles é um escritor frustrado.
Nunca conseguiu ninguém disposto a publicar seu livro
e teve de apelar para a rua. Nos finais de semana, espalha
na calçada da avenida Paulista dezenas de cartolinas
com as frases de sua obra e, com isso, além de leitores,
ganha um dinheiro para complementar a aposentadoria. Falante
e banguela, ele torce para o dia em que algum editor passe
na frente de seu livro estendido no chão e resolva
publicá-lo. "Enquanto isso, pelo menos não
estou no anonimato."
Além de buscar um bico para complementar a escassa
renda de aposentado, Samuel teve um sonho que o projetou para
a vida de escritor. "Sonhei que alguém estava
arrancando meu coração."
Samuel não sabe explicar por que o sonho o levou a
escrever, mas o fato é que, naquela madrugada, começou
a redigir suas primeiras frases e se auto-intitulou "Pensador".
A vida na escola dava pistas de que
o menino seguiria a rota errada da sua vocação
se fosse cobrador de ônibus. "Não tinha
dinheiro para fazer uma faculdade." Na escola, Samuel
conta que era chamado pelos professores de "O Moralista",
porque tinha o hábito de sair pregando ensinamentos
-mesmo sem saber o que significava, os colegas optaram pelo
apelido.
No chão da Paulista, se lêem frases como: "A
verdadeira prudência é apenas a capacidade de
governar o próprio coração". Ainda
sobre os perigos das emoções: "Para quem
busca a verdade, coração é um péssimo
conselheiro".
Sobre a vaidade: "Se você se acha bonito, charmoso
e inteligente, ponha uma roupa de mendigo numa cidade estranha.
Só assim você conhecerá seu verdadeiro
valor". Sobre a virtude: "O bom senso e a prudência
me ensinaram a não confiar no excesso de bondade e
de humildade".
O livro reserva um olhar desconfiado para as mulheres. "O
homem só descobre que casou com a mulher errada quando
fica desempregado". Ou: "Por causa das musas, que
só amam os bem-sucedidos, muitos heróis viram
bandidos".
Samuel Salles diz que nunca casou porque não descobriu
quem o amasse e nem a quem amar. Não teve filhos e
mora com uma irmã. Seu grande projeto é o livro.
Pergunto-lhe quantas pessoas lêem sua obra de rua. Ele
pensa, pensa e aposta: "Talvez mil pessoas por dia".
Digo-lhe que, com essa audiência, ele já pode
se considerar um best-seller, especialmente para uma obra
de filosofia. Ele sorri, orgulhoso. "É mesmo?"
Pergunto quanto ele arrecada com as doações
-afinal, ele espalha latinhas entre os cartazes. Num bom dia,
chega até R$ 100, o que também não o
coloca mal entre uma boa parte dos escritores.
Existe um transtorno que diferencia Samuel dos demais escritores.
Primeiro, a chuva. Mas, pior do que a chuva, são os
fiscais da prefeitura.
"Se pelo menos eles parassem para ler."
Coluna originalmente
publicada na Folha Online, editoria Cotidiano.
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