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Quando o pernambucano Sílvio Meira
começou a defender, na década de 90, a criação de um pólo
de tecnologia de informação e comunicação no bairro do Recife
Antigo -antes zona portuária, povoada de prostitutas, mendigos
e drogados-, ele ouvia freqüentemente uma ponderação: se a
idéia fosse viável no Brasil, já estaria implantada em São
Paulo, onde estão os mais avançados centros de pesquisa do
país. "Era como se estivéssemos prometendo tirar leite de
pedra", diz Silvio.
Formado pelo Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA)
e pós-graduado em informática na Inglaterra, Silvio vivia
incomodado com o fato de que seus colegas universitários tinham
de deixar Pernambuco para sobreviver. "Era um dreno de cérebros",
resume.
Para reduzir esse exílio de cérebros, formou-se um pequeno
grupo de acadêmicos e servidores públicos que discutiam mecanismos
para gerar empresas de alta tecnologia. Nascia assim, em Recife,
o Porto Digital. A desconfiança sobre a viabilidade da iniciativa
continha muito mais do que preconceito.
Não era fácil imaginar recuperados aqueles galpões vazios
e as ruas sujas e abandonadas. Um dos prédios, caindo aos
pedaços, nem tinha mais escadas -suas madeiras foram utilizadas
pelos mendigos para cozinhar. Não se via claramente como criar,
no Nordeste, um centro de produção de softwares capaz de ganhar
mercados dentro e fora do país e de evitar que os pesquisadores
tivessem de morar em São Paulo, no Rio ou em Nova York.
Em nenhum lugar do país, seja no Nordeste, seja no Sul, seja
no Sudeste, há facilidades para empreendedores. Muito pelo
contrário. Na semana passada, uma pesquisa feita pelo Banco
Mundial sobre os melhores e piores países para investir colocou
o Brasil em 119º numa lista de 155 nações. No quesito burocracia
para abrir um negócio, ficamos abaixo apenas do Chade, de
Uganda e do Paraguai; em carga tributária, perdemos só para
o Burundi e para Serra Leoa.
De acordo com os técnicos responsáveis pela pesquisa, se tivéssemos
o padrão do Chile -25º lugar na lista-, nosso crescimento
seria 2,2% maior e nosso desemprego seria 3,3% menor. O Porto
Digital de Recife é a prova disso.
Para sair do papel, o projeto, iniciado em 2000, ofereceu
uma série de facilidades a quem quisesse montar seu negócio.
Conseguiu-se uma rara aliança entre os governos estadual e
municipal, universidades e empresas privadas -logo viriam
também os recursos federais.
Coube à prefeitura ajudar na recuperação urbana, apoiada em
empresas e fundações, além de reduzir impostos municipais.
O governo estadual ofereceu um fundo para a formação de mão-de-obra.
Centros universitários instalaram-se ali. Implantou-se uma
rede de fibras ópticas.
Um dos eixos desse pólo era uma entidade chamada Cesar (Centro
de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), uma espécie de
incubadora para a formação não só de empresas mas também de
pessoas aptas a tocá-las.
Peguei, na semana passada, os mais recentes dados do Porto
Digital de Recife. Espalhadas em antigos armazéns ou em prédios
abandonados ou semi-utilizados, surgiram 84 empresas, que,
associadas à produção de tecnologia, empregam 2.000 pessoas.
Note-se que a Skype, que oferece telefonia por internet e
detém 55 milhões de usuários, foi vendida, na semana passada,
por US$ 2,5 bilhões. A empresa tem apenas 200 funcionários.
Gigantes do mercado mundial como a Microsoft, a Oracle, a
Nokia, a IBM e a Motorola, entre muitas outras, firmaram parcerias
com o Porto Digital de Recife. Desenvolveram-se produtos exportados
em escala mundial, inclusive no disputado mercado de novos
eletrônicos. "Já está muito difícil alugar espaço no Porto
Digital", comemorava Silvio Meira.
Aquele prédio, cujas escadas serviram de lenha para mendigos,
foi recuperado e passou a abrigar a Secretaria de Ciência
e Tecnologia de Pernambuco.
Na semana passada, os criadores do Porto Digital tinham
mais um motivo de orgulho. Foi anunciado, na quarta-feira,
o projeto de um bairro digital a ser implantado na "cracolândia".
Escolhido pela Prefeitura de São Paulo, o local é o símbolo
da deterioração de uma cidade: protegidos pela polícia, jovens,
à luz do dia, fumavam, impunemente, pedras de crack. Hotéis
eram abrigos para as mais diversas modalidades de delinqüência.
Delimitou-se uma área de 110 mil m2 que oferecerá incentivos
fiscais para quem investir especialmente em tecnologia da
informação.
Muita gente olha com incredulidade para o "bairro digital",
o que é compreensível. Parece tão impossível quanto os projetos
imaginados para Recife.
Se, porém, arranjos do poder público forem reproduzidos não
para atrapalhar, mas para estimular o espírito empreendedor,
não será impossível, como foi feito em Recife, tirar leite
de pedra -ou, como se tenta em São Paulo, tirar leite de uma
pedra de crack.
PS - Um bom contraste entre o atraso e a modernidade está
sintetizado em Pernambuco. Se, por um lado, os pernambucanos
oferecem a vanguarda do Porto Digital, por outro, oferecem
Severino Cavalcanti. Os inventores digitais mostram o que
melhor podemos ser se o governo não atrapalhar; Severino é,
como se viu na semana passada, a personificação do Estado
perdulário e corruptor que atrapalha. Ele entra para a história
no Brasil como o indivíduo que levou a imagem da presidência
da Câmara a seu ponto mais baixo. Erradicá-lo da vida pública
será tão pedagógico como transformar uma zona degradada num
centro de excelência tecnológica. O problema do pernambucano
mais famoso do país, Lula, é que imaginou que poderia ser
a modernidade de um Porto Digital aplicando os métodos de
um Severino.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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