Wesley Miquelino é um adolescente
negro, estuda à noite e vive numa casa de dois quartos na
periferia de São Paulo, povoada pela pobreza e pela violência
-ele divide um dos quartos com a irmã. Estatisticamente, a
trajetória de um menino negro da periferia é previsível: primeiro,
a dificuldade de concluir o ensino médio; depois, se não parar
por aí, provavelmente irá cursar uma faculdade privada de
qualidade discutível e terá de bancar uma mensalidade. Resumem-se
nele as limitações daqueles que, além da baixa renda e do
pouco acesso à educação pública decente, são discriminados
pela cor.
Não seria nada difícil para o próprio Wesley manusear números
e traduzir em estatísticas suas dificuldades. Ele ficou em
segundo lugar numa olimpíada de matemática, na qual disputaram
estudantes de uma das mais conceituadas escolas brasileiras,
que são, em sua maioria, trilíngües -falam português, inglês
e alemão. Obteve também o segundo lugar de um concurso nacional
de informática, com intrincados testes de lógica. "Tenho imenso
prazer em fazer testes matemáticos", diz. Seus dois outros
prazeres são a leitura e o basquete.
O roteiro previsível para o menino negro da periferia foi
alterado por um detalhe -na verdade, uma raridade estatística.
Quando tinha seis anos de idade, ele se candidatou a uma vaga
na Escola da Comunidade, mantida pelo colégio Visconde de
Porto Seguro, criado por alemães para oferecer um nível educacional
semelhante ao dos europeus.
Com os mesmos professores e o mesmo currículo do Porto Seguro
(exceto as aulas de alemão, que são substituídas por mais
aulas de informática), a Escola da Comunidade é gratuita e
oferecida a estudantes de famílias pobres; a imensa maioria
deles é egressa de uma favela chamada Paraisópolis, onde se
concentram alguns dos piores indicadores de violência da cidade.
Há casos de vários alunos que passaram por ali e conseguiram
prosperar, entrando nas melhores faculdades. Um deles virou
médico e agora seus filhos estudam no Porto Seguro -desta
vez bancando uma mensalidade cara mesmo para famílias de classe
média mais alta. Quem quiser se aprofundar nesse assunto poderá
ler no meu site (www.dimenstein.com.br) um relato dessa experiência
. É semelhante ao que ocorre na escola da Embraer, também
gratuita, divulgada na coluna passada, na qual os alunos de
escolas públicas estão entrando nas melhores universidades.
Wesley logo demonstrou talento para a matemática, o que ficou
notório com seu desempenho na olimpíada: enfrentou alunos
não só da Escola da Comunidade mas também do Porto Seguro,
onde estão matriculados filhos de famílias da elite econômica
e intelectual paulistana.
Além do empenho em matemática, desenvolveu o prazer pela leitura
de romances. Todas as semanas, ele vai à biblioteca e pega
pelo menos um livro. "Já estou começando a ler bem em inglês",
orgulha-se.
Desde o início deste ano, passou a atuar, sem remuneração,
como professor. Chega mais cedo à escola e ajuda colegas mais
novos que têm dificuldades em matemática -uma professora deu-lhe
dicas sobre didática . "Quem sabe eu não sigo a carreira de
professor?", questiona-se.
Ainda está em dúvida sobre o curso para o qual prestará vestibular.
"Tenho tempo para decidir." Está na primeira série do ensino
médio e ainda faltam, portanto, dois anos para o vestibular.
Antes disso, talvez enfrente outro vestibular, desta vez
como professor. Seu pai, Sérgio Miquelino, 43 anos, terminou
há muito tempo o ensino médio, mas, por falta de apoio, não
pôde ir mais longe. Além de ter de trabalhar, jamais conseguiria
bancar uma faculdade privada. O pai quer, agora, entrar numa
faculdade. "O acerto é que o filho ajude o pai", diz Maria
de Fátima, mãe de Wesley. "Depois do meu marido, será a minha
vez. Nosso filho será um de nossos professores."
Wesley imagina-se daqui a dois anos calouro de um curso de
engenharia ou administração de uma universidade pública. Mas
sabe que, seja lá qual for sua escolha, continuará sendo professor,
mesmo que nunca mais dê aulas: ele ensina o que muitos poderiam
ser se a chance que teve não fosse uma raridade estatística.
PS - O que me motivou a escrever a história de Wesley foram
duas pesquisas divulgadas na semana passada. Em parceria com
a Ação Educativa, o Ibope informou que 75% dos brasileiros
são analfabetos ou semi-analfabetos; oscilam entre não saber
ler, ler e não entender e entender pouquíssimo do que leu.
A segunda pesquisa é sobre o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), feita pela ONU: estamos socialmente abaixo, muito abaixo,
de países vizinhos e com o mesmo ou pior nível de renda per
capita -o Chile, por exemplo, onde 90% dos jovens de 15 a
17 anos estão no ensino médio. Imaginando quantos Wesleys
deixamos de gerar pela falta de prioridade à educação, essas
pesquisas mostram escândalos maiores, muito maiores, do que
aqueles que estamos vendo com os mensalinhos, mensalões, Dirceus,
Severinos, Delúbios e Malufs. Nessa matemática, aliás, quanto
mais Wesleys houver, menor será o número de larápios.
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75%
não sabem ler direito
País
está em 5º na AL em ética nos negócios
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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