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O crescente número de reclamações
de erros em diagnósticos e tratamentos registrado pelos
Conselhos Regionais de Medicina deve-se em parte à
formação precária dos estudantes que
saem das faculdades.
Essa é a convicção do diretor da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo, Giovanni
Guido Cerri, presidente do Conselho Deliberativo do Hospital
das Clínicas. Na sua estimativa, de cada 100 formados,
apenas 50 têm as qualificações necessárias
para exercer a profissão. "Estamos vivendo momentos
difíceis", diagnostica.
A razão dessa deficiência é, segundo ele,
a precariedade de muitos dos cursos de medicina abertos nos
últimos anos. Essa também é a opinião
de um dos cirurgiões brasileiros mais respeitados do
país. "Chegamos a uma situação terrível",
afirma Adib Jatene, ex-ministro da Saúde.
Se o diagnóstico é aceito, o tratamento provoca
divergências.
Para Cerri, submeter os alunos a um teste semelhante ao da
Ordem dos Advogados do Brasil, destinado aos graduados em
direito, seria "quebrar o termômetro para combater
a febre". O certo seria coibir o funcionamento das faculdades.
Já o professor José Aristodemo Pinotti discorda
disso por considerar uma "leviandade" deixar pessoas
despreparadas cuidarem da saúde dos indivíduos.
Sugere que o Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, tenha um
exame em cada Estado. "Se mudar de Estado, o médico
tem de submeter-se a um novo exame."
Divergências à parte, a qualidade dos alunos
que saem dos cursos de medicina é um debate previsível
se forem levados em conta os resultados, divulgados na semana
passada, da prova da OAB de São Paulo: quase 90% dos
formados que a realizaram foram reprovados (e do resultado
desse exame depende a permissão para o exercício
da profissão de advogado), ou seja, o diploma deles
pode ir para o lixo.
Daí surge a questão mais do que óbvia:
como se têm saído os alunos dos demais cursos
universitários? E, em especial, aqueles para quem um
erro pode significar a vida de alguém?
Se, em cursos como medicina, em que o estudante passa seis
anos em período integral na faculdade, além
de mais dois anos fazendo residência, já temos
tamanha dose de precariedade no ensino, imagine-se nos demais
cursos.
Culpar apenas as faculdades de "fundo de quintal"
é empobrecer o debate, atingindo o alvo mais fácil.
É impossível entender essa questão olhando
apenas para quem sai da faculdade. É preciso observar
quem entra. Só assim podemos perceber a tragédia
educacional brasileira.
A tragédia vem, sem exagero, do berço. Nossos
estudantes não foram bem alfabetizados e, por isso,
nunca adquiriram o hábito da leitura. Essa é
uma das razões de se manterem intelectualmente capengas
pela vida afora: não são poucos os que não
compreendem o que lêem e têm dificuldades de expressão.
Todas as disciplinas, inclusive a física, a química
ou a matemática, exigem as habilidades de leitura e
escrita.
O que estou dizendo está em números. Os dados
oficiais mostram o seguinte: 94,66% dos alunos da terceira
série do ensino médio (você leu corretamente,
caro leitor, 94,66%) demonstram um nível de leitura
inferior ao esperado.
Existem aqui gradações de analfabetismo: há
desde os que não sabem ler até os que lêem,
mas entendem pouco. Daqueles 94,66% do ensino médio,
42% têm um desempenho considerado crítico ou
muito crítico.
As crianças vêem as deficiências se somarem
em sua vida até a adolescência. Não têm
estímulo de leitura na escola (sabemos que uma minoria
dos professores gosta de ler), são poucas as que desfrutam
de creches de boa qualidade e de uma educação
infantil de bom nível. Na fase vital da alfabetização,
é comum que estudem em salas lotadas e tenham professores
pouco qualificados. Tome-se o exemplo de São Paulo,
a cidade mais rica do país, onde o aluno fica em sala
de aula, em média, durante duas horas e meia por dia.
Muitas escolas chegam a oferecer até três turnos
de dia.
Não existe mais reprovação (o que é
correto), mas quase nunca são oferecidos programas
de reforço consistentes. O que se imagina que possa
resultar desse processo? Nada mais, nada menos que o expressivo
fracasso no teste da OAB.
O mais perverso disso tudo é que esses bacharéis
reprovados no exame da Ordem, ainda que paradoxalmente, são
heróis. Sobreviveram à "seleção
natural" da escola pública, concluíram
o ensino médio -provavelmente à noite, afinal,
trabalham de dia- e pagaram mensalidades durante vários
anos para estudar numa faculdade particular.
O que acontece na OAB, portanto, não deveria espantar.
É apenas a conseqüência de uma sucessão
de omissões das famílias, da comunidade e do
poder público, todos sócios numa verdadeira
tragédia educacional.
PS - Em seu mais recente filme, intitulado "Quanto Vale
ou É por Quilo?", Sérgio Bianchi investe
contra as organizações não-governamentais,
acusando-as de serem desonestas e de viverem da miséria.
Pode-se acusar a obra de leviana devido à generalização.
Pode-se também acusar seu autor de estar desinformado
por não perceber como grandes conquistas -queda da
mortalidade infantil, preservação do ambiente
ou direitos das mulheres e dos trabalhadores, entre outras-
se devem, em parte, a articulações comunitárias
que acabaram por influenciar os governos. Apesar disso, o
filme tem um lado positivo: afinal, mostra que, no Brasil,
há empresas que fabricam cigarro e, ainda assim, conseguem
ganhar selos de responsabilidade social, o que é sinal
de que existem células cancerígenas no terceiro
setor. Na sua leviandade, o filme tem o mérito de provocar
debates mais qualificados sobre as novas estruturas de poder.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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