|
Com suas cítaras e gestos
sensualmente suaves, a música indiana começou
a mover os corpos de adolescentes na favela da Maré,
no Rio de Janeiro, e se estendeu até o bairro do Belenzinho,
em São Paulo. O surpreendente elo asiático entre
as duas paisagens urbanas, palcos tão distantes e diferentes,
é o resultado de uma experiência com a dança.
Nesse projeto de arte-educação, sensualidade
e misticismo da Índia se infiltram nos ritmos da zona
leste paulistana, onde imperam o rap e o pagode, e nos da
zona norte carioca, do funk e do samba. Mas as misturas não
param por aí.
Um dos mais famosos coreógrafos brasileiros, Ivaldo
Bertazzo começou a ensinar dança contemporânea
na favela da Maré, cercado de traficantes (e de tiros)
por todos os lados -um passo bem diferente para quem estava
tão acostumado a mover a elite paulistana.
Pesquisando ritmos pelo mundo, Bertazzo viu na sutileza da
música indiana um dos elementos para fazer os jovens,
endurecidos pela violência, descobrirem o próprio
corpo. Surgiu, então, um problema: os dançarinos,
soltos em seus movimentos físicos, começaram
a perceber outras limitações. Quando a experiência
chegou a São Paulo, incorporaram-se novas misturas.
"Aprendi que precisávamos mais do movimento corporal
para que eles pudessem se expressar." O que se pretendia
era fazer do corpo uma sala de aula, reinventando a dança
-e, ao mesmo tempo, agregando-lhe mais linguagens.
Às aulas de dança acoplaram-se programas de
língua portuguesa para que os alunos tivessem a habilidade
de falar com clareza de suas reflexões e emoções.
Acrescentaram-se também lições de matemática,
extraída dos compassos. A equipe cercou-se de psicólogos
e assistentes sociais para lidar com as dores e frustrações
que saíam em meio a todas as descobertas.
A mistura inusitada de passos, letras, números e Índia
tem pretensões bem maiores do que se restringir a um
punhado de dançarinos do eixo Maré-Belenzinho,
unindo as zonas leste paulistana e norte carioca. Além
dos estudantes, são treinados ao mesmo tempo professores
capazes de replicar a experiência de transformação
do corpo em sala de aula. "Ao aprenderem a lidar com
os segredos e as sutilezas do corpo, os jovens começam
a lidar com si próprios", diz Bertazzo.
Coluna
originalmente publicada no jornal
Folha de S.Paulo, às quartas-feiras.
|