Os aprendizes
de cozinheiro são jovens pobres e moram na periferia.
Em pouco tempo, estarão empregados
Pelos enormes vidros da cozinha, fiquei observando, no almoço
da quarta-feira passada, jovens preparando filés de
javali cobertos com molho balsâmico e acompanhados de
risoto à parmegiana. É um espetáculo
que vai além dos prazeres da gastronomia.
Todos os alunos vêm de famílias pobres, a maioria
é negra, estudam em escolas públicas e vivem
na periferia. Mas o interessante mesmo é que, em pouco
tempo, estarão empregados. Daquele restaurante-escola,
criado, em 2003, com a ajuda das prefeituras de Lyon (França)
e Genebra (Suíça), mantido pela Prefeitura de
São Paulo em parceria com uma fundação,
100% dos alunos saem contratados com carteira assinada. Existe
uma lista à espera dos restaurantes pelos formandos.
É um curso de tempo integral, no qual os aprendizes
recebem uma bolsa, aulas teóricas de professores de
uma das melhores escolas de gastronomia de São Paulo
(Anhembi Morumbi) e são orientados por um chef (Wolmar
Zocce) que cursou, em Milão, a Academia de Cozinha
Italiana. Para completar, passam por um curso de francês.
O restaurante é onde testam o que aprendem. Só
que os clientes são de verdade: a medida do sucesso
está na lotação das mesas.
Há um fato praticamente desconhecido até mesmo
das autoridades públicas relacionado a esse encontro
entre o aprendizado da culinária sofisticada e a periferia
paulistana.
Na semana passada, por causa da comemoração
dos 453 anos da cidade, a Fundação Seade garimpou
uma estatística exclusivamente para esta coluna. Das
pessoas de 18 a 24 anos que vivem na cidade de São
Paulo -idades aproximadas daqueles jovens que vi preparando
a comida-, 80% estão cursando o ensino médio
ou já concluíram alguma faculdade. Pode-se discutir
a qualidade, claro, mas esse número está próximo
ao de nações desenvolvidas.
Esse número seria mais uma das hipóteses, entre
outros como o Bolsa Família, para explicar a crescente
saída de migrantes da cidade. Além da falta
de empregos por causa do baixo crescimento, haveria também
exigências maiores num lugar em que o ensino médio
chega a tanta gente. "O empregador sempre vai optar por
alguém com melhor escolaridade", diz a diretora-executiva
do Seade, Felícia Madeira.
Não se consegue mais entender nem a cidade de São
Paulo nem as regiões metropolitanas -e, portanto, nem
o Brasil- sem olhar como o mercado de trabalho vai moldando
os indivíduos.
Nesse aumento de qualificação está parte
das explicações para algumas das estatísticas
sobre São Paulo divulgadas pelo Seade: as mulheres
paulistanas, mesmo as mais pobres, têm cada vez menos
filhos. Resultado: a população está mais
velha (a média é de 31 anos) e diminuiu o ritmo
de crescimento demográfico, gerando uma nova paisagem
humana.
Compreende-se, a partir dessa nova paisagem, a mudança
gradual dos governantes em suas agendas de prioridades.
O prefeito Gilberto Kassab comemorou o aniversário
da cidade prometendo criar mais
22 CEUs e 70 escolas; escolas velhas ganhariam, além
de reformas, 300 salas de aula. Comprometeu-se a transformar
225 clubes esportivos em clubes-escola, criando uma opção
voluntária de educação tempo integral.
José Serra mostra-se decidido a ampliar a oferta de
cursos profissionalizantes médio e superior e facilitar
o acesso a cursos pré-vestibular. Estuda criar escolas
de excelência de ensino médio semelhantes aos
antigos colégios de aplicação, onde se
testariam inovações pedagógicas -a idéia
é que a primeira unidade seja no antigo prédio
do Caetano de Campos, em frente à praça da República.
Lula quer acabar o segundo mandato com a imagem associada
à educação, investindo na formação
de professores e bancando programas para aproximar a escola
da comunidade, inspirado na experiência dos bairros
educativos desenvolvidas em Nova Iguaçu e em Belo Horizonte,
ligadas ao PT.
Kassab, Serra ou Lula vão fazer (e bem feito) o que
estão prometendo? A julgar pelo histórico de
governantes e suas promessas, impossível não
ter dúvidas. Existe, porém, um argumento pragmático
a favor deles.
Sabem que os mais pobres vão diferenciar os políticos
não só pelas obras ou pelos programas assistenciais.
Vão julgá-los também pela chance que
ofereceram para que os eleitores estivessem mais preparados
a obter um emprego -exatamente a chance que estão tendo
aqueles jovens com seu filé de javali ao molho balsâmico.
PS - Para quem quiser conferir. Como é um projeto subsidiado,
o restaurante-escola, instalado na Câmara, oferece um
bom preço. Salada, prato principal e sobremesa saem
por R$ 18. Não conheço nenhum lugar em São
Paulo com comida tão sofisticada por tão pouco.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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