Quando o ônibus partiu do
Ceará rumo ao Rio de Janeiro, Luiz Cláudio da
Silva, de 38 anos, estava que não se agüentava
de felicidade. Ele iria, depois de sonhar a vida inteira,
conhecer a Cidade Maravilhosa. Melhor ainda: viajou para mostrar
aos cariocas a arte popular do reisado e mamulengo que conhece
- e representa - tão bem. Luiz e outros 44 artistas
cearenses integram o movimento chamado União dos Artistas
da Terra da Mãe de Deus, da cidade de Juazeiro do Norte.
O objetivo do grupo era se apresentar no encontro Interculturalidades,
que aconteceu neste mês de julho na UFF - Universidade
Federal Fluminense, em Niterói, e também no
Espaço Sesc de Petrópolis, na Região
Serrana, programada para este sábado, 31. Mas o grupo
aproveitou a oportunidade para fazer um intercâmbio
cultural, trocar experiências e principalmente divulgar
o trabalho desenvolvido na região. Assim, fizeram apresentações
nas ruas do Centro da cidade: Largo da Carioca, na Praça
XV e na Avenida Chile, em frente ao prédio da Petrobras.
Sempre com suas danças, música, bonecos e figurinos
super coloridos.
Criado há três anos pela família Gomide,
que fundou a Companhia de Arte Carroça de Mamulengos
– bonecos do teatro nordestino apresentados em praças
-, o movimento é formado por artistas populares, a
maior parte de trabalhadores rurais que prestam serviços
temporários em fazendas da região. O projeto
visa a valorização da cultura regional e, principalmente,
usa a arte como um meio de trabalho social.
“Não queremos formar artistas, e sim indivíduos.
Pessoas conscientes de sua realidade e capazes de mudá-la”,
diz Carlos Gomide, fundador da companhia. Assim, na sede da
União, no bairro pobre de João Cabral, trabalham
cerca de 150 pessoas. Maria Gomide, 18 anos, filha da Carlos,
prefere dizer que todos são geradores de arte e não
beneficiados pelo projeto. “O povo já está
acostumado com o coronelismo local, de esperar a esmola. Não
é este nosso objetivo. Queremos orientar os jovens,
que estão perdidos, sem rumo”, diz. Lá,
eles aprendem música, danças regionais, reisado,
guerreiro, tecelagem e até o plantio de frutas para
consumo próprio.
Carlos garante que mais do que divulgar o movimento, essa
primeira viagem do grupo tem objetivos mais complexos. “Vir
para o Rio de Janeiro é uma grande oportunidade para
toda essa gente. Quero que eles tenham seus trabalhos reconhecidos.
Acho importante esta troca de experiências. Abrir a
cabeça de quem vem e de quem já está
aqui”, diz. A viagem só foi possível graças
à UFF, que arcou com a maior parte das despesas de
passagens, alimentação e estadia.
Artista não tem idade
Na trupe da União tem gente de todas as idades:
desde um bebê de sete meses a mestres como Francisco
de Assis, de 72 anos, o mais velho do grupo. Ele trabalhou
a vida inteira na roça, plantando arroz, feijão
e cana de açúcar, mas nunca deixou sua vocação
para a arte de lado. Há 40 anos, Francisco personifica
Mateus, uma espécie de palhaço do reisado, além
de mestre de maneiro pau, outra expressão artística
do Nordeste. Para ele, a viagem é a realização
de um sonho. “O Rio é a coisa mais linda, muito
maior que Fortaleza. Aqui tem muito edifício”,
disse Francisco, após a apresentação
nas ruas da cidade. Antes, os artistas visitaram o Cristo
Redentor e o Pão de Açúcar.
Além da beleza do Rio, outro fator que os artistas
tiveram a oportunidade de realizar apresentações
em lugares fechados. O reisado e o guerreiro são quase
sempre apresentados na rua, em festas religiosas. No teatro
da UFF, na quarta-feira passada, dia 28, o público
de Niterói assistiu a duas horas de folguedos. As improvisações
no palco, que podem durar até cinco horas, foram compactadas
em 20 minutos.
No palco, muitos adereços, trajes com cores quentes
e chapéus ricamente enfeitados com fitas coloridas
e espelhinhos – a principal característica do
reisado. E seus personagens: O "caboclo" ou "Mateus"
e a "Dona Deusa" ou "Dona do Baile" são
fundamentais na brincadeira. Há, ainda, o "Caboclo"
e a "Cabocla", a "Cigana", a "Viúva",
o "Velho", a "Velha" e o "Boi".
Entre os instrumentos, banjos, violões, zabumba, triângulo,
pandeiros e maracás. Com direito aos cânticos
de chegada e de despedida, dois dos mais belos da música
folclórica brasileira. Ao final do espetáculo,
aplausos do público e artistas em êxtase.“Nossa,
foi uma emoção muito grande. Todos ficaram muito
empolgados”, conta Maria.
A Carroça de Mamulengos é uma companhia de
arte itinerante, composta exclusivamente por integrantes da
família Gomide. Ela foi criada há 29 anos por
Carlos, quando ainda morava em Brasília. Em 1976, quando
trabalhava com teatro no Distrito Federal ele se viu numa
encruzilhada: para se profissionalizar ele teria que estudar
artes dramáticas no Rio de Janeiro ou em São
Paulo, mas não tinha dinheiro para isto. Pouco tempo
depois assistiu a uma apresentação do grupo
pernambucano Mamulengo Sorriso, e se apaixonou. “Naquele
momento vi que poderia fazer arte no Brasil da forma que queria”,
diz.
Família na estrada
A partir daí, Carlos passou a ter contato
com mestres da arte regional. Morou dois anos em Mari, na
Paraíba, conhecendo o trabalho do mamulengueiro Antônio
Alves Pequeno, conhecido como Mestre Antônio do Babau.
Esse convívio possibilitou também o contato
com outros folguedos populares como as Bandas de Pífanos,
repentistas e emboladores de coco. A Carroça passou
então a buscar inspiração para suas montagens.
Com o passar dos anos a família Gomide começou
a crescer. Com o nascimento dos filhos, a concepção
cênica mudou: fez-se urgente uma adaptação
da brincadeira à vida familiar - o pai Carlos, a mãe
Schirley e os filhos Maria, Antônio, Francisco, João,
Pedro, Mateus, Isabel e Luzia. Desde então, a companhia
tem se apresentado por todo o país. E desde a criação
da União dos Artistas da Terra da Mãe de Deus
os Gomides estão instalados em Juazeiro.
Agora, o desafio dos artistas da União é conseguir
voltar para casa. O patrocínio da UFF não cobriu
todos os gastos – e quase que a viagem foi cancelada.
Mas os artistas resolveram contar com a sorte – e o
talento – para não frustrar os planos da trupe.
"Estávamos planejando esta viagem há muito
tempo, não poderíamos desistir de jeito nenhum.
Resolvemos arriscar", diz Maria.
Para conseguir dinheiro, agora eles estão tentando
agendar novas apresentações no Rio.
“O Sesc de Friburgo está tentando uma raspa de
tacho da verba que sobrou do Festival de Inverno para nos
ajudar. Se conseguirmos, nos apresentaremos lá no Dia
dosPais, 8 de agosto, e voltaremos para casa na quarta-feira,
11”, conta Maria. Bem, no espírito mambembe.
CARLOS COLLIER
do site Viva Favela
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