O sol ainda nem se levantou quando
os primeiros seringueiros da Amazônia chegam à
floresta, as 4h da manhã. É hora de se embrenhar
pelas trilhas de suas colocações – como
chamam os trechos de seringais formados em média por
150 árvores. Cada trabalhador tem três ou quatro
colocações para “sangrar” por dia.
A sangria é o processo de retirada do leite que brota
destas árvores, que na verdade é o próprio
látex. Os seringueiros, em geral, partem sozinhos para
sua cruzada diária. Na floresta os obstáculos
são muitos: onças pintadas, igarapés
e muitas árvores. O facão e a escopeta são
as companhias mais freqüentes e a intimidade com a mata
é tanta que os seringueiros não se perdem jamais.
“É mais fácil um homem se perder na cidade
grande do que um seringueiro na floresta”, brinca Antônio
Batista de Araújo, de Assis Brasil, no Acre, ex-seringueiro
que hoje aplica o projeto TECBOR.
O trabalho na floresta termina por volta das 16h. Logo depois
o látex é processado para se transformar em
borrachas escolares, preservativos, mouse pads, peças
para computadores e automóveis. E é nesta fase
que entra o projeto TECBOR, sigla de Tecnologia Alternativa
para Produção de Borracha na Amazônia.
Desenvolvido desde 1997 pelo Laboratório de Tecnologia
Química da Universidade de Brasília (UnB), o
Projeto TECBOR recebeu em 2001 o troféu de excelência
em tecnologias sociais da Fundação Banco do
Brasil (FBB). Em 2003, a técnica passou a ser disseminada
entre associações e grupos de seringueiros,
graças a uma parceria da FBB com a UnB e o Ministério
Extraordinário de Segurança Alimentar.
Ao aderirem ao TECBOR, as famílias dos seringueiros
recebem kits com material necessário para o processamento
da borracha. A principal evolução foi a adoção
de um coagulante formado por um ácido pirolenhoso,
resultante da carbonização da madeira. Após
dissolução em água e filtragem, o látex
é misturado ao coagulante. Em seguida, a borracha seca
ao ar livre. Antes da TECBOR, a borracha era defumada, o que
contribuía com a poluição atmosférica
e prejudicava a saúde dos seringueiros por causa da
exposição à fumaça. Além
disso, a queima de madeira implicava na derrubada de árvores.
“O ácido pirolenhoso é uma espécie
de fumaça líquida. O forno à lenha é
vedado e no contato com essa barreira, a fumaça se
transforma no ácido”, explicou João Abílio
Diniz, técnico da Empresa de Assistência Técnica
e Extensão Rural de Roraima (Emater-RO), que há
cinco meses treina e monitora um grupo de 25 seringueiros
da cidade de Ariquemes, interior do Estado.
O novo coagulante também impede a ação
de fungos. Feita a mistura, a solução é
distribuída em bandejas e prensada manualmente para
ser pendurada em varais. Depois de dois dias de secagem, a
borracha está pronta para ser vendida. O resultado
é um produto de qualidade bem superior ao produzido
anteriormente. Na hora da venda para as usinas, a Folha de
Defumação Líquida (FDL), como é
chamada a nova borracha, vale mais que o dobro do produto
fabricado sem o coagulante.
“Se antes os seringueiros tiravam R$ 1,30 por quilo
de borracha, com o TECBOR eles passaram a vender o quilo por
R$ 3,60. Hoje, por mês, podem lucrar mais de R$ 1.000.
Agora, eu vejo entusiasmo nestes trabalhadores. Estamos resgatando
uma atividade que estava perdendo terreno“, contou João
Abílio.
Trabalho na floresta
A atividade dos seringueiros é considerada ecologicamente
correta porque as árvores não sofrem como a
extração e, ao contrário, passam a fabricar
ainda mais látex após a sangria. Um calendário
de extração também ajuda a manter a saúde
das seringueiras. Por causa desse respeito dos seringueiros
pela floresta, a sociedade passou a enxergar na atividade
extrativista não um meio de exploração
da natureza e sim de conservação.
A extração de látex no Brasil começou
no fim do século 19. O primeiro grande boom da borracha
no país ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial. A
produção passou a ser incentivada pelo governo
federal, mas com o fim da guerra, a atividade acabou voltando
ao anonimato. Na década de 1970, os fazendeiros tomaram
posse de terras na Amazônia, expulsando os seringueiros
e desmatando a floresta. Com o conflito, surgiram os sindicatos
e cooperativas de seringueiros, liderados por grandes nomes
como o de Chico Mendes.
Em outubro de 1985, Chico Mendes ajudou a criar o Conselho
Nacional dos Seringueiros (CNS) e sua luta passou a ganhar
repercussão nacional e internacional, sobretudo devido
ao surgimento da proposta de União dos Povos da Floresta,
um documento reivindicatório, visando a união
de índios, trabalhadores rurais e seringueiros em defesa
da preservação da Floresta Amazônica e
da criação de reservas extrativistas. Em 1888,
depois de ser premiado pela ONU com o Global 500 pelo trabalho
desenvolvido, Chico Mendes viu as primeiras reservas extrativistas
sendo criadas no Brasil. Em 22 de dezembro daquele ano, sua
luta foi interrompida, com o seu assassinado na porta de casa..
As novas tecnologias
Hoje, além do FDL, um tipo de borracha mais complexo
é fabricado pelos seringueiros: a Folha Semi Artefato
(FSA). Segundo Floriano Pastore, professor da Unb, coordenador
e idealizador do projeto TECBOR, o processo de produção
da FSA é semelhante ao da FLD, com a diferença
que ao invés do coagulante pirolhenhoso, a borracha
recebe enxofre para ser vulcanizada. Depois de colorida, a
FSA fica pronta para a fabricação de pequenas
peças.
“A FSA exclui a indústria. Ela permite que os
seringueiros produzam eles mesmos artefatos simples, como
borrachas de escola, peças para mouse e para automóveis”,
explica Floriano.
Segundo levantamento da FBB, ao todo no Brasil 220 famílias
dos estados de Acre, Rondônia, Pará e Amazonas
estão habilitadas a processar o látex com a
TECBOR. Floriano Pastore acredita que este número seja
maior. Segundo ele, metade produz a FSA. Em janeiro de 2005,
a FBB, em parceria com o Ibama, a UnB e o Ministério
Extraordinário de Segurança Alimentar vai capacitar
e oferecer treinamento a mais 210 famílias.
Para Pastore, o maior benefício do novo processamento
é fixar os seringueiros na floresta. “O TECBOR
devolve a dignidade ao homem da Amazônia. Com a técnica
do TECBOR, ele continua seu trabalho de guardião da
mata visando sua própria sobrevivência. São
os seringueiros que vão permitir que tantos recursos
não sejam destruídos. Da floresta, eles vão
tirar seu sustento, seus remédios. Não adianta
termos uma riqueza tão grande e não sabermos
utilizá-la”, conclui.
DANIELLE CHEVRAND
da Fundação Banco do Brasil
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