Cada vez que o carteiro aparece,
cresce a expectativa dos moradores da Quinta do Caju, na Zona
Norte do Rio. Eles vêm recebendo por semana 50 cartas,
em média, para comparecer à associação
de moradores local. Motivo: dar andamento no processo de regularização
de suas casas. A Quinta do Caju é a primeira comunidade
do Rio de Janeiro a ter direito ao título de moradia.
O que já fez os preços dos imóveis dobrarem
de valor.
Ao todo, serão beneficiadas 2.460 pessoas. Elas são
parte da etapa final de um processo que teve início
nos anos 60, mas só caminhou mais concretamente nos
últimos oito anos, com a implantação
do projeto Favela-Bairro na comunidade.
Na Associação de Moradores da Quinta do Caju,
representantes da prefeitura se encarregam de checar as informações
do cadastro geral de moradores, levantado em 1996. Os dados
servem como base para a avaliação dos valores
a serem pagos pelo registro dos títulos que serão
enviados ao cartório de Registro Geral de Imóveis.
Os títulos serão concedido através das
secretarias municipais de Habitação e de Urbanismo.
A presidente da associação de moradores Iraydes
Pinheiro Henriques, de 60 anos, já recebeu sua carta
e sabe quanto pagará: R$ 2 mil. Ela acha o valor alto,
mas explica os critérios. “Depende da área,
se é considerada nobre, comercial ou mais carente,
o que faz o metro quadrado variar entre R$ 2 e R$ 19. No meu
caso, por morar na Rua Circular, que é a principal
do Caju, e por já possuir um imóvel fora daqui,
pago um valor mais elevado. Mas há casas que terão
que pagar até R$ 4 mil, e os comerciantes, R$ 5 mil”,
fala.
Azulejos azuis
Os carnês para o pagamento dos registros devem
chegar no final de setembro. Tudo pode ser parcelado em até
60 meses, mas as escrituras só serão entregues
depois das taxas estarem devidamente pagas. Dona Iraydes explica,
mas não concorda. “Não acho justo. Nós,
moradores, não somos invasores e fizemos muito aqui.
Acho que essas escrituras deviam ser de graça. Além
disso, por aqui, quase todo mundo é idoso, vive de
aposentadoria e vai ter dificuldades em pagar, mesmo parcelando”,
reclama.
Dona Dulcinéia de Castilo Silva, de 84 anos, ainda
não recebeu sua carta, mas aguarda ansiosa para ter
o título da propriedade em que reside com o segundo
marido, Valdir Louza, de 73 anos. Ela mora na Rua Circular,
uma das três que formam a comunidade. Sua casa –
ou pelo menos parte dela – é uma das quatro ou
cinco que ainda resistem na madeira original em que foram
erguidas as primeiras construções na ocupação
inicial da região, no início do século
XX.
Tudo foi pintado em azul, como boa parte das moradias por
ali. Tal como os azulejos azuis e brancos que recobrem algumas
fachadas, isso também é resultado da forte herança
portuguesa em toda a comunidade.
Dona Dulcinéia se orgulha do lugar onde mora porque,
diferentemente de outras favelas, o sossego por ali é
total. “A gente dorme tranquilo, de janela aberta”,
diz. Ela lembra ainda da praia que existia a poucos metros
de sua casa, aterrada para dar lugar a outras moradias: “A
gente tomava banho de mar e era muito bom”.
Como ela, Dona Iraydes e boa parte dos moradores não
trocam suas casas na Quinta por nenhuma outra. “Aqui
sempre foi caro. E agora, quando o processo todo for finalizado,
as vendas serão feitas com escritura definitiva e não
mais através de documento da associação
de moradores. Se meses atrás, se comprava uma casa
aqui por R$ 35 mil, R$ 40 mil, hoje, custam quase o dobro.
A minha não entrego nem por R$ 100 mil”, argumenta.
Não sem razão. Iraydes se orgulha da sala
de 25m2, dos cinco quartos, três banheiros, uma enorme
cozinha, duas áreas cobertas, terraço e é
uma das poucas que conta com garagem. “Minha mãe
dizia que daqui só pro cemitério. Eu digo a
mesma coisa”, jura.
O português Frederico Fradique Rodrigues Teixeira,
68 anos, e sua esposa Glória de Almeida Santos, de
63, também não pensam em deixar a Quinta do
Caju. Eles vão pagar R$ 117 pelo registro de sua casa,
em duas vezes. Ao contrário de quem acha caro o valor
do registro, Glória prefere pagar e pôr fim àquele
processo tão longo. “O importante é ver
as coisas legalizadas, tudo direitinho no papel. Aqui era
só barro vermelho, tinha valas e um monte de coisas
que foram melhoradas. O título garante tudo o que os
moradores fizeram”, diz.
Mas é a história de moradores ainda mais antigos,
como Dona Dulcinéia, que ilustra como foi a ocupação
da Quinta do Caju. Ela foi uma das funcionárias da
fábrica de trens que funcionava onde hoje opera o Parque
de Eletrônica da Aeronáutica. Dona Dulcinéia
trabalhava no setor de estofamentos e recebeu, como os demais
operários, a permissão para ocupar a casa de
madeira em que mora até hoje. “Quando vim pra
cá, tinha 18 anos. Tudo isso aqui era uma área
livre, cheia de pés de caju. O nome veio daí”,
conta.
Proibido tijolo
A presidente da associação de moradores
conhece bem a história. “Quando minha mãe
nasceu, em 1915, os funcionários da fábrica
de trens já moravam aqui e os pescadores que vieram
de Póvoa do Varzim, em Portugal, no começo do
século passado, ocupavam a área próxima
ao Porto do Caju. Entre anos 30 e 40, quando a fábrica
faliu tudo passou para a União. Foi também quando
houve uma ocupação mais intensa”, conta.
Foi mais ou menos nessa época, que Thomaz Fernandes
Pinheiro, pai de Dona Iraydes, resolveu se fixar no lugar.
“Antes, a gente morava de aluguel num terreno ao lado
do Parque da Aeronáutica. Como havia comprado o lote
aqui, meu pai construiu um barraco de madeira porque não
se podia fazer nada em alvenaria”, fala Iraydes. Foi
o desejo de melhorar a casa em que a família vivia
que deu início à longa luta pela posse do terreno.
A proibição de obras em alvenaria se traduzia
na ronda dos fiscais federais que, volta e meia, apareciam
pela Quinta e nas cartas que os moradores recebiam regularmente,
lembrando que o terreno pertencia à União e
que a qualquer momento eles poderiam ter que deixar o local.
Em 1961, quando as visitas dos fiscais federais começaram
a se tornar mais espaçadas, Thomaz resolveu burlar
a proibição e erguer paredes de tijolos. “A
primeira casa de alvenaria foi a nossa. O que animou o pessoal
a fazer outras”, lembra Iraydes. Foi também o
que levou o pai a tentar legalizar a situação.
“Ele não se conformava em ter adquirido um terreno,
pagar taxas à União e não ter a posse
legal do lote”, conta. Seu Thomaz tanto fez que terminou
recebendo intimação para abandonar o local.
“Era a época do regime militar”, explica
Iraydes.
Seu Thomaz conseguiu permanecer onde estava, mas novas tentativas
de legalização foram suspensas até que,
depois de sua morte, Iraydes resolveu entrar para a recém-criada,
à época, associação de moradores.
“Em 1988, entrei como tesoureira, e em 1990 me elegi
presidente com a bandeira da legalização”,
conta. A partir daí, Iraydes foi atrás de autoridades,
políticos e quem pudesse ajudar no processo. “Como
trabalhava na Fundação Nacional de Saúde
e fazia vários cursos em Brasília, aproveitava
a viagem para isso”, lembra.
Onze viagens à Brasília
Entre idas e vindas, Iraydes chegou a ir onze vezes
a Brasília e até a tomar café da manhã
com o ex-presidente Collor. “Ele assinou o processo
para começar a legalização da área.
Mas toda vez que esse processo andava caía um ministro.
No dia em que consegui que a ministra Zélia Cardoso
assinasse um documento importante, à noite ela foi
exonerada e o processo para a gaveta”, conta Iraydes.
Dona Floripes Rodrigues Rocha Moreira, de 67 anos e quarta
geração dos Rocha Moreira na Quinta do Caju,
acompanhou de perto todo empenho de Iraydes. “Ela foi
uma batalhadora. Sem ela a gente não tinha conseguido
nada. Acho que tiramos a sorte grande. Agora, depois de tanto
sacrifício, fico feliz por saber que vamos ter nosso
título”, elogia.
Colônia reformada
Muitos, no entanto, não acreditavam. “Me
chamavam de maluca”, lembra Iraydes. De tanto percorrer
repartições públicas, em 1996, a associação
conseguiu trazer o Favela-Bairro para a comunidade e com ele,
muitas mudanças. “Muita coisa já havia
sido feita pelos moradores, que formavam comissões
e reinvindicavam melhorias à região administrativa,
pediam aos políticos. Mas o Favela-Bairro remodelou
toda a Quinta do Caju. E, principalmente, retomou todo processo
de regularização do lotes”, conta Iraydes.
Foi assim que, entre 1996 e 2000, foi realizada a metragem
dos terrenos, o cadastramento dos moradores, um censo local
e várias obras. Numa delas, os moradores das antigas
palafitas à beira do Porto do Caju foram removidos
para prédios populares erguidos nas proximidades.
A comunidade ganhou também uma creche e uma fábrica
de gelo - que ainda não entrou em funcionamento -,
e teve a colônia de pescadores reformada. Em junho deste
ano, todos receberam o “habite-se”, numa cerimônia
no Palácio da Cidade. “Muitos diziam que toda
esta história era um filme que não tinha fim.
Estavam enganados”, diz Iraydes, com um sorriso de vitória.
CLÁUDIO PEREIRA
do site Viva Favela
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