"A nossa realidade é
difícil e constrangedora. A população
não dá o respeito que é preciso e merecemos.
Nos tratam como bichos. Isso já acarretou muitos danos
para a nossa comunidade. Desde 1988, mesmo com a Constituição,
perdemos mais de 15 lideranças em mortes bárbaras.
Muitas vezes, nem sabemos quem matou porque eles foram assinados
a caminho da aldeia".
O depoimento é da índia Margarida Rocha de
Oliveira, do povo Pataxó-hã-hã-hãe
-comunidade indígena da família lingüística
maxacali, tronco macro-jê, habitantes do Sul da Bahia,
mas especificamente dos municípios de Prado, Porto
Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Pau Brasil, Itajú
da Colônia e Itabuna. Margarida, que é professora,
faz um retrato da situação do índio no
Brasil, principalmente em regiões em que o domínio
pela terra é mais evidente.
Nos últimos anos, a rivalidade étnica a que
ela se depara diariamente se agravou, provocando conflitos
constantes na região entre índios e não
índios, principalmente com a população
de Pau Brasil. Com a proposta de transformar essa realidade
e de melhorar a relação entre as comunidades
indígenas e brancas, buscando o respeito mútuo
à cultura e à educação, a organização
não-governamental Thydêwá desenvolveu
o projeto "Índio Quer Paz", que conta com
o apoio institucional da Unesco (Organização
das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura), e patrocínio da Brazil
Foundation.
A Thydêwá trabalha para o resgate, a preservação,
a defesa e a valorização da cultura indígena.
A iniciativa pretende criar uma nova cultura de paz na região
e acabar com o preconceito. "Sabemos que não será
de forma rápida que iremos conseguir mudar essa realidade.
Historicamente, os índios sempre foram vistos como
escravos e têm muitos problemas com os donos das terras,
pois estas não são demarcadas e também
devido ao poder e dinheiro envolvidos. Mas os Pataxós
são um povo necessitado de respeito e estão
buscando os seus direitos", assegura Sebastian Gerdic,
presidente da organização e coordenador do projeto.
Para alcançar essa nova mudança de postura
e convivência pacífica, o projeto, que se inicia
no mês de agosto, irá capacitar 32 professores
e 10 lideranças indígenas para atuarem como
agentes da paz e mediadores de conflito. O grupo irá
tratar de questões como os direitos universais e buscar
alternativas para se resolver os conflitos com o diálogo.
Primeiramente, será realizado um trabalho entre os
índios para fortalecer a união dos Pataxós,
pois contam com seis etnias e cerca de 2500 índios.
Em seguida, os índios irão fazer visitas às
escolas para falar sobre sua realidade, costumes e perdas.
A meta é atingir cerca de 10 mil alunos. "Acredito
que o projeto veio em ótimo momento. Esse contato é
um dos melhores meios para se quebrar as barreiras existentes.
Por isso, nas nossas escolas, já procuramos trabalhar,
além da nossa cultura, também a realidade da
sociedade lá fora", ressalta Margarida.
No projeto, que terá duração de um
ano, serão realizadas ainda atividades que promovam
a integração entre os diversos atores sociais
da comunidade, como reuniões entre índios e
moradores da região, encontros de sensibilização
com autoridades locais e a criação de conselhos.
A arte e a cultura também serão ferramentas
importantes para a promoção do intercâmbio
entre os povos. A iniciativa prevê a realização
de eventos culturais, em que os moradores possam conheçam
as aldeias, e os índios visitem teatros e museus. "A
idéia é que todos caminhem juntos nisso, pois
são ações não só em benefício
do índio, mas de toda a sociedade. Afinal, os moradores
também sofrem com estes problemas. A região
é vista como um lugar perigoso", comenta Sebastian.
Índio quer respeito
O projeto é um dos resultados da "Campanha
Índio quer Respeito", coordenada pela Thydêwá
e executado pelos Tupinambás, em Ilhéus (BA),
durante uma semana no mês de março de 2003. Na
ocasião, foram promovidas dinâmicas de conscientização
com os índios com o tema direitos humanos, palestras
sobre as formas pacíficas de retomar a terra e o respeito
às diferenças culturais. A campanha contou também
com visitas às escolas da região, em que os
índios trocavam idéias com os alunos e apresentavam
cantos e danças sagrados. As atividades tiveram ainda
a participação de autoridades locais e da Funai
(Fundação Nacional do Índio). Segundo
os organizadores da Campanha, mais de 20 mil alunos se envolveram
no evento.
A cacique Tupinambá Jamopoty lembra que, apesar de
os índios terem sido bem recebidos pelos estudantes,
muitos deles não sabiam que as aldeias estavam a apenas
18 km dali. Os "palestrantes" procuraram apresentar
aos alunos o que é ser índio, quais os costumes,
valores e sofrimentos do povo. "Procuramos dizer a eles
que desejamos respeito a que temos direito e como queríamos
nos relacionar. Mostramos o quanto a terra é essencial
para a nossa vida, mas que não estamos aqui para roubá-las",
conta.
De acordo com a cacique, a campanha já trouxe para
a região mudanças de atitudes e posturas. "Antes
éramos vaiados o tempo todo na cidade. Isso melhorou
100%. Tínhamos muitos problemas com a prefeitura local
e os fazendeiros da região. Acredito que com as atividades
nos aproximamos mais dos moradores e isso abriu muitas portas
para nós", destaca Jamopoty.
A ONG Thydêwá realiza ainda diversas outras
ações com os índios da Bahia para garantir
a preservação da cultura e a convivência
pacífica com a população local, como
o projeto "Índios na Visão dos Índios",
uma coleção de sete livros, com fotos e depoimentos,
escritos por eles mesmos. A idéia, de acordo com Sebastian,
é mostrar à sociedade que não são
apenas os grandes pesquisadores e historiadores que podem
escrever sobre a questão indígena. "Os
índios também podem contar a sua própria
história".
É também da Thydêwá o projeto
"Irmãos em um Mundo", uma série de
vídeos documentários que mostram o intercâmbio
entre membros de duas comunidades sob a perspectiva e visão
dos próprios índios.
Uma atividade que vem sendo desenvolvida com sucesso, desde
2001, é o projeto Índio On-Line. São
mais de sete comunidades dos Estados da Bahia, de Pernambuco
e de Alagoas, com cerca de 4 mil índios cada, interligadas
pela Internet. As comunidades formaram um grupo de estudo
e trabalho a fim de buscar o seu desenvolvimento e melhoria
na educação, saúde, alimentação.
Além disso, os índios têm a possibilidade
de mostrar ao mundo a sua cultura. "E quando eles fazem
isso, geram um novo conhecimento, buscando um entendimento
diferente. Uma nova realidade", explica Sebastian.
DANIELE PRÓSPERO
do site setor3
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