O estilo é bem aquele da música negra norte-americana que aparece
no filme Mudança de Hábito, com Whoopi Goldberg.
Mas os 27 integrantes do coral Soul Gospel moram nas comunidades
cariocas de Paciência, Antares, Bangu e Vila Kennedy
(zona oeste do Rio), e, aos poucos, têm conquistado
palcos muito além das igrejas da região.
Recentemente, participaram de um grande show no hipermercado
Extra, em Santa Cruz, ao lado de outros artistas gospel, de
Kelly Key e do cantor Bello. Também são convidados
para apresentações em lojas de instrumentos
musicais e para entrevistas em rádios. “Fomos
para cantar uma música na 93 FM, cantamos oito e ficamos
três horas no ar”, entusiasma-se a produtora Verônica
Porto, 24 anos. Foi ela que no início do ano criou
o projeto Do Harlem à Vila Kennedy, Vozes and Voice
e reuniu cantores de várias igrejas para formar um
só coral. Todos têm entre 15 e 35 anos.
Com pouco mais de cinco meses de estrada, o Soul Gospel tem
algumas conquistas no currículo. “No Festival
de Grupos Gospel, promovido pelo estúdio Bravo, de
Caxias (Baixada Fluminense), conseguimos dois prêmios:
de melhor instrumentista, para o Gustavo Silva Medeiros, de
22 anos; e melhor música, Tu és digno, composta
pelo maestro Naurinei de Oliveira Costa”, diz Verônica.
Assim, garantiram a participação no CD que reuniu
os vencedores do evento e um prêmio de R$ 1 mil. “Agora
só falta receber o dinheiro”, acrescenta.
Suas vozes também já conquistaram o apoio de
empresas e de moradores da região. O administrador
regional Jorge Azevedo, por exemplo, aposta no grupo e até
cedeu o espaço do antigo supermercado Rio, na Vila
Kennedy, para os ensaios, que são realizados aos sábados.
O supermercado Braga, no mesmo bairro, doa semanalmente o
lanche para os integrantes do coral. Por enquanto, o grupo
ainda não cobra cachê em suas apresentações.
O apoio que os integrantes do Soul Gospel têm conseguido
é também o que os impulsiona a continuar. Como
no caso de Cláudio Tanes dos Santos, de 22 anos, outro
morador de Paciência. “No começo, minha
família dizia que música não era para
pobre porque não dá dinheiro. Hoje, graças
a nossa união no coral, tenho mais esperança.
É isso que quero passar para os outros adolescentes
da favela”, diz.
“Quando conseguirmos nos estabilizar e começar
a ganhar dinheiro, vamos investir no social”, adianta
Verônica. Isso se traduzirá em oficinas de música,
com aulas gratuitas para garotos de comunidades, e espetáculos
mensais com que esperam apresentar o projeto a outros jovens.
Ou seja, passar tudo o que aprenderam adiante.
Para isso, estão tentando junto à prefeitura
do Rio ocupar o espaço do Teatro Mário Lago,
que funciona na Vila Kennedy. “Nesses shows, também
estaremos consolidando a carreira do grupo, independente da
religião”, afirma Verônica. Para ela, é
preciso que alguém dê certo na música
e na arte em geral para que se possa mostrar aos jovens de
favela que existem mais opções de vida. “Estamos
mudando a nossa vida para poder mudar também a de outras
pessoas. E assim descobrimos e ampliamos uma consciência
cidadã”.
Projeto premiado
O Soul Gospel, na verdade, nasceu da conquista de
um prêmio. Ao perceber as dificuldades em que vive a
maioria dos músicos, particularmente os de igrejas
evangélicas, Verônica bolou um projeto que inscreveu
no programa Palma da Mão, parceria da ONG carioca Fase,
a ONG holandesa Solidariedad e o grupo Rappa, que premia idéias
de protagonismo juvenil. “Soube do Palma da Mão
pelo Viva Favela. Foi aí que comecei a achar que poderíamos
acreditar em nossos sonhos”, conta Verônica. Terminou
como uma das dez vencedoras e começou a organizar o
coral.
Os R$ 10 mil ganhos na premiação, no início
deste ano, estão bancando as despesas do grupo, como
iluminação, aluguel de som, figurino, gastos
de divulgação e transporte. O que sobrar, será
investido na gravação de um CD independente.
As dificuldades ainda são muitas, até por se
tratar de um coral tão numeroso. Mas Verônica
está otimista. “Nesse período juntos,
acho que já conseguimos mais do que outros grupos formados
há bem mais tempo, evangélicos ou não”,
afirma. No coral, ela acredita que todos ganham. “Unidos,
trocamos experiência e conhecimento. Esta é a
nossa academia de música. Estamos aprendendo mais para
ensinarmos depois”, diz Naurinei de Oliveira Costa,
que aos 25 anos é maestro e arranjador do coral.
O gênero é sempre o mesmo: gospel. “Cantamos
boas mensagens, músicas que tocam os seguidores de
qualquer religião”, explica Verônica. No
repertório há uma versão de Joyfull,
Joyfull, que aparece no filme de Whoopi Goldberg, e outros
hits americanos, como Mississipi Mass Choir, Georgia Mass
Choir, além de composições do próprio
grupo.
O Soul Gospel tem sido uma oportunidade de descobrir novos
talentos. “Alguns até já haviam ganhado
concursos de televisão, mas continuavam a depender
de instrumentos e do espaço das igrejas para praticar
o que aprendeu sozinho”, fala Verônica.
Carlos Eduardo Gonçalves da Silva, de 22 anos, é
um exemplo. Ex-catador de lixo e morador de Antares, favela
de Santa Cruz, ele passou dois anos se apresentando num programa
da TV Record. “Impressiona que ele demonstre tamanha
técnica, apesar de nunca haver estudado música”,
diz Verônica.
Virando crente
Eduardo entrou para a religião aos oito anos.
“Como a igreja era o único lugar em Antares em
que se tinha acesso a instrumentos e microfone, ele tornou-se
crente ainda criança. Foi um desses garotos que procuram
as igrejas para poder exercer a atividade musical”,
conta Naurinei. “O problema é que estas igrejas
quase nunca dão apoio para que eles ampliem seu conhecimento
teórico. A maioria tem se garantido apenas no dom”,
acrescenta.
Adulto, Eduardo passou a se apresentar com um trio numa igreja
de Botafogo (Zona Sul). Depois, eles decidiram tentar a sorte
num programa de calouros de televisão em São
Paulo. “Depois de dois anos aparecendo na mídia,
vi que estava sem um real no bolso”, conta o rapaz.
Fora a frustração profissional, ainda precisava
enfrentar os problemas de uma família de nove irmãos,
uma mãe alcoólatra e um pai de 90 anos.
Segundo ele, a participação no CD Usina de
Talentos, produzido pelo programa, também não
lhe rendeu nem um centavo. Em 2003, tentou a carreira solo,
sem sucesso. “Foi quando, com a ajuda da Verônica,
fui tentar a sorte no concurso de um programa do SBT. Ganhei
os votos dos telespectadores e um prêmio de R$ 5 mil,
com o qual comprei uma casa para minha mãe”,
lembra. Ele ainda aguarda a gravação do CD desse
concurso – e reserva uma faixa para a participação
do coral. “Quero também divulgar o talento dos
demais integrantes do Soul Gospel”, diz.
Os problemas vividos por Eduardo são mais ou menos
os mesmos que os demais integrantes do coral sempre enfrentaram.
“No início, eu nem tinha instrumento. Meu primeiro
violão foi doado por alguém que acreditou em
mim. Mais tarde, outra pessoa impressionada com meu talento
me deu uma guitarra de 1.500 dólares. Se não
fosse a ajuda deles não sei se estaria aqui hoje”,
conta Gustavo, eleito o melhor instrumentista do Festival
de Grupos Gospel.
Arranjador, compositor e cantor, ele está empolgado
com o coral e sonha produzir espetáculos em comunidades.
“Quero buscar minha realização na música
e com ela tentar realizar outros sonhos”, diz ele, que
mora em Paciência. Hoje, Gustavo toca também
com os ex-músicos de Tim Maia na banda Clave de Soul.
ANNA CAROLINA MIGUEL
VILMA HOMERO
do site Viva Favela
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