"As sociedades urbanas sofrem
de fecofobia", afirma Walter Oliveira, coordenador de
projetos e pesquisa da EcoCasa/EcoFabrica. Ele se refere à
barreira cultural das sociedades urbanas em lidar com as possibilidades
de aproveitamento dos dejetos humanos. A empresa paulista
que ele representa investe em adaptações de
um produto ainda pouco conhecido: o sanitário seco
compostável. A tecnologia transforma as fezes em adubo
orgânico – sem uso de água e através
de um processo bioquímico.
Segundo ele, o sistema foi introduzido no Brasil pelo Instituto
de Permacultura e Ecovilas do Cerrado – IPEC, localizado
em Pirenópolis (GO). "A cada ano no país
em torno de 160 milhões de toneladas de dejetos humanos
são transformadas em poluição e depositadas
junto com o lixo urbano ou despejadas nos rios. O banheiro
seco é uma solução simples, ecológica
e economicamente viável para solucionar esse e outros
problemas", garante Walter, que destaca nesta entrevista
as vantagens do sanitário em relação
ao modelo convencional.
Como funciona o sanitário seco compostável?
O sanitário seco é uma tecnologia consagrada
em diversos países do mundo, que transforma o que é
visto como problema - os dejetos humanos - em adubo orgânico,
recurso valioso para agricultura. É "seco"
porque não utiliza ou desperdiça água.
É "compostável" pois se vale de um
processo bioquímico que, por meio da ação
de bactérias e microorganismos, converte os dejetos
em composto orgânico fértil e isento de patogênicos.
E, principalmente, é "ecológico" por
se aproveitar dos ciclos biológicos naturais não
tendo como produto o esgoto e, portanto, não contaminando
a água.
Como se estrutura o sanitário?
O sanitário é composto de três
partes: a cabine de uso; duas câmaras de compostagem
e o sistema mecânico de adição de material
orgânico seco rico em carbono, como serragem, aparas
de grama e cascas de arroz. O sistema mecânico de adição
de carbono garante de maneira simples, através de um
sistema de cabos e polias (roda de ferro) acionado a partir
da abertura e do fechamento da porta, a ativação
e a manutenção do processo de compostagem. A
cabine é aparentemente igual a de qualquer sanitário
convencional, apresentando uma única diferença:
a parte oca do interior do vaso é construída
de maneira que não se tenha contato visual com o dejeto.
As câmaras de compostagem ficam abaixo do vaso sanitário,
de modo a promover o aquecimento solar e a ventilação
do material para favorecer o processo de compostagem. A ventilação
é garantida por um duto/chaminé que através
de um processo chamado termossifão (ventilação
solar) torna o sanitário inodoro. A câmara conta,
ainda, com duas comportas no nível do solo que facilitam
a retirada do material tratado – com uma enxada, por
exemplo.
Qual a diferença na utilização
deste sistema para o tradicional?
A única diferença é que em vez
de acionar a descarga com água, o sistema adiciona
no vaso uma porção de serragem (ou outro material
rico em carbono) e fecha sua tampa automaticamente para evitar
a entrada de insetos. Essa rotina se repete todo dia, até
que a câmara de compostagem esteja cheia. Quando a primeira
câmara estiver com sua capacidade esgotada, ela deve
ser fechada (com uma tampa, um vaso de plantas etc.) a fim
de que ocorra processo de compostagem. Assim, quando a segunda
câmara tiver esgotado seu uso, a primeira já
pode ser esvaziada e utilizada novamente, e assim em diante.
Quais as vantagens?
A principal é o fato de o sistema não
misturar fezes com água potável e, assim, não
gerar a enorme quantidade de esgoto que muitas vezes acaba
poluindo as águas. Além disso, o sanitário
transforma o que antes era problema (esgoto) em recurso, já
que ao final do ciclo produz húmus. Isso representa
verdadeira reciclagem de fertilizantes agrícolas, uma
vez que os nutrientes dos alimentos ingeridos retornarão
para o solo. Existem, ainda, inúmeras outras vantagens:
não requer instalações hidráulicas,
não produz lixo contaminante, elimina agentes patogênicos,
produz um subproduto livre de odores e passível de
manuseio, permite a reutilização do material
como composto orgânico, dispensa maquinários
em sua manutenção anual, tem custo operacional
irrisório, não agride o meio ambiente e possui
um alto potencial de capitalização em marketing
ecológico.
No Brasil, qual a porcentagem de esgoto que não
tem tratamento e polui o meio ambiente?
Ainda que só 0,1% do esgoto de origem doméstica
seja constituído de impurezas de natureza física,
química e biológica, e o restante seja água,
o contato com esses efluentes e a sua ingestão é
responsável por cerca de 80% das doenças e 65%
das internações hospitalares. Atualmente, apenas
10% do total de esgoto produzido recebem algum tipo de tratamento,
os outros 90% são despejados "in natura"
nos solos, rios, córregos e nascentes, constituindo-se
a maior fonte de degradação do meio ambiente
e de proliferação de doenças. Por isso,
a eliminação do esgoto proveniente dos sanitários
representa uma grande vantagem. É relevante lembrar
que a cada ano 160 milhões de toneladas de dejetos
humanos são produzidos no Brasil e o uso de adubos
químicos devasta por ano 17 milhões de hectares
de florestas tropicais e 24 bilhões de toneladas de
solo. Vale saber que o mundo economizaria 19 bilhões
de dólares em fertilizantes se usasse corretamente
os dejetos como adubo orgânico.
A tecnologia pode ser aplicada em áreas urbanas,
como comunidades de baixa renda e no terreno montanhoso de
favelas?
Com certeza! Existem diversos modelos de sanitários
compostáveis aplicáveis em variados tipos de
clima, de relevo, e para diferentes necessidades de uso. Os
terrenos montanhosos são, na verdade, excelentes para
a construção. Isso porque na maioria das vezes
os sanitários são construídos em dois
pavimentos e, sendo assim, o relevo acidentado exclui a necessidade
de uma escada de acesso à cabine. Além disso,
o sanitário seco pode ser construído em regime
de mutirão e o húmus produzido pode ser utilizado
em minhocários comunitários e vendido, gerando
renda para essas comunidades. Num caso como esse a responsabilidade
ambiental torna-se um fator palpável para todos os
participantes.
O uso dessa tecnologia encontra resistências?
O problema começa na barreira cultural observada
com mais freqüência nas sociedades urbanas. Costumamos
chamá-la de fecofobia ou medo dos próprios dejetos.
É só reparar os sistemas sanitários convencionais
- que praticamente escondem os dejetos utilizando odorizadores
de vaso e um visual totalmente clean (limpo, em inglês)
– para verificar a maneira quase auto-destrutiva de
se lidar com os recursos hídricos e com as possibilidades
de manejo dos dejetos. A idéia de se utilizar o próprio
dejeto, para qualquer que seja o fim, é realmente algo
quase assustador para uma sociedade desavisada de suas próprias
mazelas futuras. Já no meio rural as pessoas são
acostumadas a lidar com o esterco, conhecem o potencial da
matéria orgânica e a funcionalidade de se acompanhar
os ciclos biológicos da natureza. Outra possível
barreira à implantação dessa tecnologia
no meio urbano é a necessidade de espaço físico,
já que o sanitário deve ser instalado em áreas
externas (pois nessas áreas a ventilação
solar e o aquecimento da câmara são assegurados).
No caso da EcoCasa, já foi feita alguma parceria
no sentido de implantar a tecnologia em áreas urbanas?
Nesse caso, qual o prazo médio para a construção
e qual a estimativa de custo?
O que fizemos foi pesquisar e desenvolver um projeto
adequável a diversas situações. A idéia
é que a comunidade sempre saia ganhando. Imagino que
ONGs, universidades ou projetos governamentais possam viabilizar
a construção de sanitários em larga escala.
Vale ressaltar que num prazo de 60 dias é possível
construir no local até 30 sanitários ou mesmo
até 120 pré-fabricados. Calculo que a construção
de uma única unidade, com capacidade para atender ao
uso de cerca de 50 pessoas, por exemplo, tenha o custo em
torno de R$ 8 mil. Esperamos que a partir dessa primeira exposição
do nosso trabalho no EcoPop a gente possa ampliar expectativas
em relação a parcerias.
Como é feita a manutenção do sistema?
Inclui custo adicional?O sistema é desenhado para suportar,
no mínimo, seis meses de uso em cada câmara.
O custo de manutenção é praticamente
irrisório. Uma operação necessária
para o pleno funcionamento é a alimentação
do reservatório com a serragem ou outro material rico
em carbono, que é feita de maneira automática.
A garantia do sistema é a mesma para qualquer tipo
de obra: conforme a legislação vigente, são
oferecidos cinco anos para instalações de obra
civil e um ano para materiais pré-fabricados. Nesse
último caso a garantia é oferecida pelo próprio
fabricante.
Mas os dejetos de até 50 pessoas ficam acumulados
lá seis meses e não há mau cheiro?
Exatamente, o banheiro seco compostável é,
inclusive, mais higiênico do que o convencional. O sistema
automático de adição de material carbônico
ao sanitário assegura que, uma vez na câmara
de compostagem, os dejetos serão tratados ao longo
deste período e transformados em adubo orgânico.
Além disso, a ventilação solar torna
o sanitário inodoro.
Como e onde surgiu a tecnologia do sanitário
seco?
Diversos povos, principalmente orientais, não
misturavam fezes com água potável. Conhecemos
exemplos de sanitários compostáveis do século
18, nos Estados Unidos. Países que sofrem com escassez
de água de chuva geralmente adotam a tecnologia. Na
realidade, ela é uma compilação de várias
técnicas de fossas secas praticadas tanto na América
Central e do Norte quanto nos países do Oriente Médio
e da Oceania. O problema hídrico nesses países
sempre foi um grande impulso para o desenvolvimento de soluções
realmente eficazes para as questões do saneamento e
da agricultura. O México e a Austrália talvez
sejam os países que tenham dado mais ênfase no
uso popular desses sistemas. No Brasil, a tecnologia foi introduzida
há cerca de sete anos por André Soares no IPEC
- Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado, localizado
em Pirenópolis (GO). O IPEC pratica e desenvolve diversas
técnicas voltadas para o desenvolvimento sustentável
e constitui valiosa referência não apenas nas
questões sanitárias mas também nas técnicas
de planejamento habitacional, rural, sistemas construtivos
e de energias renováveis. Foram construídos
e testados pelo IPEC alguns sanitários secos e a partir
de então foi feito um estudo prático muito interessante.
Quais adaptações foram feitas para
a realidade brasileira?
A equipe do IPEC conseguiu chegar a um modelo eficiente
mas que ainda dependia de alguns cuidados como a adição
manual da serragem no sanitário e o fechamento da tampa
após o uso. Com a intenção de se instalar
o sistema em larga escala, a EcoCasa investiu no desenvolvimento
da automatização desse sistema de adição
de carbono e também na idealização de
sistemas térreos pré-fabricados em PRFV ou fibra
de vidro – o que garante rapidez na construção
e mobilidade do sistema. Outros materiais foram levantados
para que possamos nos valer ao máximo de recursos locais
para as obras.
Quem quiser conhecer exemplos de sanitários
secos construídos no Brasil onde pode encontrar?
A técnica já é utilizada em
diversas comunidades. Para quem tem interesse em conhecê-la,
vale visitar o IPEC, em Pirenópolis; o Instituto de
Certificação Florestal da Amazônia (IMAFLORA),
em Piracicaba (SP); o Sítio Beira Serra, em Botucatu
(SP), e alguns trabalhos de organizações não
governamentais em comunidades ribeirinhas de baixa renda em
Boa Vista do Ramos (AM). Para mais informações,
favor entrar em contato com a equipe da EcoCasa pelo e-mail
walter@ecocasa.com.br ou visitar o site www.ecocasa.com.br.
JULIA DUQUE ESTARADA
do site EcoPop
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