"Sou agricultora, professora
e líder da Associação Quilombola Rural
Sítio Angico, em Bom Conselho, semi-árido pernambucano.
Posso garantir que, há vinte anos, a comunidade tem
um sonho. O sonho de ter água o ano todo. Somente agora,
graças à construção das cisternas,
conseguimos realizar esse sonho", afirma Maria Márcia
Rodrigues de Almeida.
De fato. Se para quem mora nos grandes centros urbanos a
água é algo tão natural que só
se nota sua presença quando falta, no semi-árido,
ela é sinônimo de sobrevivência. E os moradores
não se esquecem da dificuldade que é viver com
sua ausência. O coordenador executivo da Articulação
no Semi-Árido Brasileiro (ASA) pelo Estado de Pernambuco,
Aldo dos Santos, resume: "para o sertanejo, a água
é vida. É um elemento quase mais forte do que
o alimento".
Márcia conta que, nos últimos dois meses,
a vida de sua família mudou bastante. Até então,
duas ou três pessoas de sua casa - quase sempre mulheres
e crianças - andavam de dez a doze quilômetros
por dia, a pé, em busca de água para abastecer
os seis membros da família. Hoje, todos têm bem
claro o que representa uma cisterna: água de qualidade
para beber e cozinhar o ano todo, pertinho de casa.
O semi-árido ocupa 11 Estados brasileiros - os 9
do Nordeste, além de Espírito Santo e Minas
Gerais -, totalizando cerca de um milhão de quilômetros
quadrados. Nessa região, as chuvas são concentradas
nos primeiros meses do ano - sobretudo fevereiro, março
e abril. Quando a água chega, as condições
de vida melhoram. Mas, quando vem a estiagem, a luta pela
água incorpora-se ao cotidiano das pessoas.
Enganando a seca
A quantidade de água que cai do céu
nos primeiros meses do ano seria suficiente para suprir as
necessidades das famílias durante todo o ano. O problema
é que ela é absorvida diretamente pelo solo
e acaba sendo desperdiçada. Uma forma bastante simples
de evitar esse desperdício é construir cisternas,
isto é, recipientes construídos com placas de
cimento pré-moldadas, capazes de armazenar a água
que cai nos telhados no período chuvoso para utilização
para consumo humano durante o restante do ano.
Naidison Quintella Baptista, coordenador executivo da ASA
Bahia, conta que a solução foi proposta há
mais de 30 anos, por agricultores. Mas só há
dois anos, graças à articulação
da sociedade civil promovida pela Articulação
no Semi-Árido Brasileiro (ASA) com o poder público,
virou política pública.
A ASA é uma rede que congrega cerca de mil organizações
sociais, associações comunitárias, entidades
vinculadas à igreja, sindicatos de trabalhadores dos
11 Estados afetados pelo semi-árido. Foi criada em
1999, em função da realização
da 3ª Conferência das Partes da Convenção
de Combate à Desertificação e à
Seca -, patrocinada pelas Nações Unidas, em
Recife.
Até então, explica Aldo dos Santos, da ASA
Pernambuco, as organizações sociais só
dialogavam nos momentos críticos. Mas durante a Conferência,
essas organizações - que, como explica Naidison,
de uma forma ou de outra, já estavam ligadas à
luta pela sobrevivência no semi-árido - montaram
um fórum paralelo de discussões. Na oportunidade,
a sociedade civil entregou a Declaração do Semi-Árido
às autoridades.
A Declaração trazia uma série de sugestões
para promover o desenvolvimento socioeconômico da região,
propondo formas alternativas de se gerir o semi-árido,
facilitar o acesso dos agricultores ao crédito, promover
pesquisas, oferecer assistência técnica e garantir
a segurança hídrica e alimentar, tornando viável
a convivência no semi-árido.
Após o evento, a articulação continuou
e montou-se uma rede de organizações, que passou
a desenhar o "Programa de Formação e Mobilização
Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um
Milhão de Cisternas Rurais", mais conhecido como
"Programa Um Milhão de Cisternas" (P1MC),
pois prevê a construção de um milhão
de cisternas do semi-árido, em cinco anos.
Aldo explica que o nome oficial do Programa já dá
as indicações: sua base é a participação
popular, a formação das famílias para
que aprendam a conviver com o semi-árido. "A ASA
tem um programa concreto, em torno do qual as pessoas se mobilizam.
O processo é, portanto, bastante participativo. A proposta
é que a sociedade construa uma política pública
para o semi-árido do nordeste e depois fique encarregada
de fazer seu controle social. O fato de todos se mobilizarem
por uma causa concreta promove a integração
dessas pessoas e organizações", avalia
Aldo.
O coordenador da ASA - Bahia, Naidison, acrescenta que a
maior contribuição da ASA é "a articulação
da força do semi-árido. Até então,
havia uma força, mas que estava dispersa. Com esse
trabalho, conseguimos mostrar que o povo do semi-árido
não é composto por pedintes, mas por pessoas
dignas, que merecem respeito, auto-estima e uma atenção
mais específica em termos de política. E que
não precisa de ações assistencialistas".
Sociedade organizada
O sucesso do P1MC depende, desde o primeiro momento,
da participação popular. Quem decide quais serão
as famílias beneficiadas é uma comissão
local, formada por representantes da sociedade civil local.
Itamar de Carvalho, um jovem agricultor de 19 anos, que
vive em São Bento do Una, cidade próxima a Bom
Conselho, conta uma história semelhante à da
professora Márcia. Ele diz que em sua comunidade, existem
muitas famílias numerosas, que precisavam buscar água
com carros-de-boi em alguma fonte ou cacimba a quilômetros
de sua residência.
O jovem faz parte da comissão que definiu quais famílias
seriam beneficiadas em sua região. E afirma que abriu
mão da construção de uma cisterna em
sua casa, pois julgou que havia famílias maiores e
mais necessitadas. Hoje, no entanto, ele já tem uma
cisterna em casa, construída por intermédio
de um outro programa.
Escolhidas as famílias que serão beneficiadas,
é montado um curso de capacitação para
o gerenciamento hídrico. Durante dois dias, elas são
conscientizadas sobre o uso racional da água, qual
a melhor forma de captar as águas do telhado, como
fazer a manutenção da cisterna, segurança
hídrica etc. Então, parte-se para a construção
dos reservatórios.
Contrapartida
Como as famílias devem se apropriar do equipamento,
elas precisam ajudar a construir as cisternas. Lucílio
Halter Sobral Mendes, agricultor de Poção, no
Agreste Meridional do Pernambuco, está construindo
cisternas na comunidade. Ele explica que para obter o benefício,
as famílias devem apresentar uma contrapartida de 10%
do valor da cisterna (R$ 148,00). Além disso, os membros
das famílias devem cavar o buraco da cisterna, colocar
a areia, preparar a massa e oferecer as refeições
para os pedreiros.
Cada cisterna construída com apoio da ASA armazena
16 mil litros de água - o suficiente para abastecer
uma família de cinco pessoas, durante oito meses. A
água só pode ser utilizada para beber e cozinhar.
As cisternas são construídas em forma de mutirão,
conta Lucílio. Então, primeiro todas as famílias
ajudam a levantar uma das cisternas, depois a outra. E assim
sucessivamente, até que toda comunidade seja atendida.
Mulheres ativas
Na maior parte das comunidades, os homens são
capacitados com cursos de pedreiro e ficam responsáveis
pela construção das cisternas. Em Pernambuco,
no entanto, algumas mulheres também estão virando
"pedreiras". Aldo dos Santos afirma que esse processo
gera autonomia, aumento da auto-estima e recupera a cidadania
das mulheres. Ele acrescenta que, no semi-árido, a
"água é um instrumento eleitoral muito
forte. Muitos votos são vendidos em troca de um carro-pipa"
e que o P1MC ajuda a quebrar essa dependência.
O jovem Itamar lembra também que os índices
de cólera de sua região eram altíssimos,
pois a população consumia água contaminada.
"Com a construção das cisternas [na comunidade
já existem cerca de 40], os índices de cólera
e mortalidade infantil caíram", garante.
Outra mudança que Itamar sentiu em sua comunidade
foi a estagnação do número de migrantes.
"ASA fez com que a comunidade visse o mundo com outros
olhos. Os jovens começaram a notar que o semi-árido
é viável", afirma. Ele conta que até
pouco tempo atrás, era comum ver jovens saindo da área
rural e indo para cidades mais desenvolvidas. Agora, um movimento
de luta pela terra e a favor da Reforma Agrária está
se estruturando fortemente em sua região. Isso porque
a população notou que o direito à terra
é muito importante para o desenvolvimento das comunidades.
Um milhão em cinco anos?
Embora o Programa preveja a construção
de 1 milhão de cisternas, desde 1999, apenas 50 mil
foram construídas. Isso, de acordo Naidison, acontece
porque o Programa começou de forma piloto e só
no último ano ganhou impulso, com o apoio da Agência
Nacional de Águas, do o Ministério do Desenvolvimento
Social e da Febraban. Ele diz, no entanto, que ainda faltam
recursos para atingir a meta prevista. E que, de qualquer
forma, já são, no mínimo, 200 mil pessoas
com acesso à água de qualidade e, portanto,
menos expostas a doenças.
Aldo dos Santos completa que, se por um lado a meta de milhão
de cisternas em cinco anos não vai ser alcançado,
por outro, o número ainda tem um valor simbólico
forte. Mostra que, "se não vamos construir todas
as cisternas em cinco anos, a meta adverte que também
não se pode esperar mais 100 anos para isso".
Para ele, a "dimensão cidadã do Programa
é tão ou mais importante do que a construção
da cisterna em si. Porque há cinco ou dez anos, o governo
começou a construir cisternas no Nordeste e elas acabaram
sendo abandonadas pela população, que não
se sentia dona da cisterna. Além disso, não
adianta construir uma cisterna se não tiver por trás
disso um processo educativo. O programa é um instrumento
da cidadania. Não se pode perder a dimensão
da transformação social", conclui.
A luta da ASA agora, de acordo com Naidison Baptista, é
para dar visibilidade a outros de seus projetos e não
tanto para o P1MC, que já obteve reconhecimento social.
Ele conta que a articulação trabalha com projetos
de utilização de biodigestores, que poderiam
ser uma fonte de energia bastante interessante para as comunidades
mais pobres do semi-árido (pois é possível
gerar gás de cozinha a partir do esterco). Ou com a
construção de barragens e cisternas subterrâneas,
bombas manuais populares para retirar água dos poços
artesianos que estão tampados porque têm pouca
vazão (entre 100 e 1500 litros por hora), agroecologia,
reflorestamento, qualificação de professores
rurais, beneficiamento das frutas e o incentivo da agricultura
familiar.
LAURA GIANNECCHINI
do site Setor3
|