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Hoje,
dois terços dos analfabetos do mundo são mulheres,
e 80% dos refugiados são mulheres e crianças.
Os especialistas acreditam que, mais do que tratar apenas
isoladamente deste cenário, é necessário
que essa meta perpasse por todas as outras propostas pela
ONU. "A igualdade não é um objetivo específico
e, sem essa visão, não será possível
transformar o cenário de pobreza do mundo e promover
o desenvolvimento sustentável", comenta Júnia
Puglia, oficial de programa do Unifem para o Brasil e o Cone
Sul (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas
para a Mulher). Isso se deve ao fato de que das 1,2 bilhão
de pessoas em todo o planeta vivendo abaixo da linha de extrema
pobreza, com o equivalente a menos de 1 dólar por dia
(ajustado em cada país pela paridade do poder de compra),
70% são mulheres.
Este fenômeno é identificado hoje como a "feminização
da pobreza". "Sem um combate específico na
questão das mulheres pobres, das famílias chefiadas
por mulheres, da renda familiar, e de atividades como o cuidado
dos idosos e doentes, tudo o que fizeram de graça,
que tem um custo enorme para a sociedade, têm que ser
incluídas na elaboração de estratégias
para a superação da pobreza feminina que se
reflete da superação da pobreza da sociedade
como um todo", completa Júnia.
No Brasil, por exemplo, entre 1992 e 2002, segundo uma pesquisa
lançada em março deste ano pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos,
o número de lares brasileiros chefiados por mulheres
subiu de 19,3 para 25,5%. De acordo com a pesquisa, as mulheres
chefes de família estão concentradas principalmente
nos domicílios 25% mais pobres. O perfil dessas mulheres
guarda algumas características comuns: geralmente elas
não têm cônjuge (tornaram-se viúvas
ou não vivem com o parceiro), como mais de 64% têm
mais de 40 anos e a maioria tem baixa escolaridade ou é
analfabeta, elas têm mais dificuldades para se inserir
no mercado de trabalho, quando conseguem, geralmente, recebem
baixos salários.
Diferente do que ocorre em outros países, como apontado
pela ONU, o Brasil já superou as desigualdades de gênero
em relação à educação.
No país, a conquista dessa equidade de gênero
proposta pela meta passa pela superação da discriminação
e do preconceito e a criação de meios para garantir
o fortalecimento da mulher, ampliando seus espaços
de trabalho e garantindo a igualdade de oportunidades para
ambos os sexos tanto no interior das organizações
quanto no conjunto dos espaços sociais.
Na pesquisa "A Mulher Brasileira nos Espaços
Público e Privado", realizada em 2001 pela Fundação
Perseu Abramo, as mulheres relacionaram o que seria necessário
para que suas vidas melhorassem: o fim das discriminações
no mercado de trabalho (47%), a igualdade de direitos (10%),
o combate à violência contra as mulheres (9%);
maior liberdade (5%), menos machismo e mais reconhecimento
por parte dos homens (5%). Duas em cada três brasileiras
(65%) avaliam que a vida das mulheres melhorou "nos últimos
20 ou 30 anos", percepção que cresce conforme
aumenta a renda familiar.
Especialistas apontam diversos avanços conquistados
pelas mulheres ao longo destes anos tanto no âmbito
internacional, regional como nacional, por meio de diferentes
atores políticos e sociais como os movimentos feministas
e de mulheres; redes e organizações não-governamentais;
organismos governamentais e intergovernamentais; setores da
sociedade civil, instituições, programas, fundos
e agências de cooperação. No plano internacional,
as Conferências da Organização das Nações
Unidas (ONU), em especial, a Conferência Mundial de
Direitos Humanos (1993) e a Conferência Mundial da Mulher
(1995).
Em dezembro de 1993, a ONU emitiu a Declaração
sobre a Eliminação da Violência contra
as Mulheres e, em 1994, instituiu uma Relatoria Especial sobre
a Violência contra as Mulheres. Outras ações
se destacam, como a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher (CEDAW, 1979), da qual o Brasil faz parte desde 1984.
E, no plano regional, a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a Mulher (Convenção de Belém do Pará,
1994), ratificada pelo Brasil em 1995. A Convenção
estabelece que o direito de toda a mulher a viver livre de
violência abrange o direito de ser livre de toda forma
de discriminação.
As reivindicações das mulheres e de suas organizações
mudaram ao longo do processo pela luta de igualdade. A advogada
Daniela Ikawa, coordenadora do Programa de Clínicas
Legais da SUR – Rede Universitária de Direitos
Humanos, e colaboradora da elaboração do primeiro
relatório brasileiro apresentado ao Comitê pela
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, destaca que, primeiramente, percebeu-se que
não era suficiente garantir uma igualdade formal para
se atingir uma igualdade material, pois vulnerabilidades específicas
deveriam ser respondidas com medidas específicas de
proteção.
"Já num segundo momento, percebeu-se a relevância
da diferença. Ao longo da luta pela consolidação
dos direitos humanos, fica a cada momento mais clara a necessidade
de reconhecer as peculiaridades culturais, da idade, e aquelas
derivadas do gênero, dentre outras. A diferença
é uma das ferramentas da democracia, da pluralidade,
do diálogo", aponta.
De acordo com Júnia Puglia, isso fica evidente na
postura adotada pelos movimentos de luta pelos direitos das
mulheres. Em princípio, a luta era pelo direito de
falar, de ser vista como mulher e como cidadã. Atualmente,
existe mais uma intenção de serem vistas como
um grupo inserido na sociedade. O movimento internacional
pelos direitos das mulheres tem privilegiado três questões
centrais neste âmbito: a discriminação
contra a mulher; a violência contra a mulher e os direitos
sexuais e reprodutivos.
Apesar dos diversos avanços, os obstáculos
que impedem a igualdade entre os sexos, tanto na esfera privada
como na esfera pública ainda são grandes. Silvia
Pimentel, coordenadora nacional da seção brasileira
do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher (Cladem) e presidente do Instituto
para Promoção da Eqüidade, afirma que,
essa é uma tarefa que "envolve a modificação
de padrões socioculturais de condutas de homens e mulheres,
com vistas a alcançar a eliminação dos
preconceitos e práticas costumeiras baseadas na idéia
de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou
em funções estereotipadas de homens e mulheres".
Em sua opinião, é necessário se estabelecer
uma postura crítica quanto a estereótipos como:
"a mulher é a rainha do lar, a responsável
pela paz e tranqüilidade familiar"; ou "a atividade
da mulher é bem-vinda na medida em que não interfira
em suas responsabilidades familiares". "Por isso
o redimensionamento do papel social da mulher e do homem na
família é condição de igualdade
de gênero e autonomia das mulheres", destaca.
O que se percebe hoje é que a desigualdade entre
os gêneros persiste apesar da constante luta pelos direitos
das mulheres, pois há uma larga distância entre
as conquistas formais e a prática cotidiana. Para reverter
este quadro, Nilcéa Freire, ministra-chefe da Secretaria
Especial de Políticas Públicas para as Mulheres,
afirma que é preciso reconhecer que existe o preconceito
e dar visibilidade a ele, a fim de "desnaturalizar"
as atitudes discriminatórias.
A partir daí, se faz necessária a criação
de políticas públicas estruturais que "reconheçam
as diferenças e as cargas históricas e culturais
que se impõem sobre as mulheres", afirma a ministra.
O Brasil deu este primeiro passo ao realizar, no mês
de julho, a Conferência Nacional de Políticas
Públicas para as Mulheres, com a participação
de mais de 120 mil mulheres. Na ocasião, foi elaborado
um conjunto de diretrizes para compor um Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres. Um Grupo de Trabalho Interministerial,
composto por oito ministérios, além de representantes
da sociedade civil e membros executivos estaduais e municipais,
está trabalhando na elaboração deste
plano que deve ficar pronto até o final de novembro,
fechando o Ano da Mulher.
No dia 20 de agosto, o governo instituiu também,
no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego,
a Comissão Tripartite com o objetivo de promover políticas
públicas de igualdade de oportunidades e de tratamento,
e de combate a todas as formas de discriminação
de gênero e de raça, no emprego e na ocupação.
Outro caminho alternativo adotado para garantia de direitos
é a elaboração das ações
afirmativas. Nilcéa acredita que é preciso atuar
diretamente em favor daqueles que acumulam desvantagens e
colocar isso numa balança da eqüidade, pois no
caso específico das mulheres, as políticas que
se limitam a tratá-las com igualdade têm sido
claramente insuficientes, já que tratar igualmente
pessoas que estão em situações profundamente
desiguais não altera as desvantagens iniciais.
Já existem ações com este enfoque.
No início do ano, a prefeita de São Paulo, Marta
Suplicy, sancionou o projeto de lei que obriga todos os programas
de habitação da prefeitura a darem prioridade
às mulheres, tanto na titularidade das casas como na
participação de programas profissionalizantes
e assistenciais. As políticas compensatórias
criadas nestes últimos dez anos, como o programa Bolsa-Escola
ou, mais recentemente, o Bolsa-Família, ao reconhecerem
a mãe da família como interlocutora e beneficiária
dos recursos, vêm colaborando também para melhorar
a condição social de muitas mulheres e crianças.
No entanto, as mulheres brasileiras ainda estão sub-representadas
na política. De acordo com a publicação
"O Compromisso das Empresas com a Valorização
das Mulheres", são apenas 8,2% na Câmara
dos Deputados e 14,8% no Senado. Nos legislativos estaduais,
somam 12,5% do total de deputados. Dos 27 estados da federação,
apenas dois são governados por mulheres. Dos 5.561
municípios existentes no Brasil no início de
2004, apenas 6% são chefiados por mulheres, e, nas
câmaras municipais, as vereadoras não ultrapassam
12%.
Nilcéa destaca que, mais uma vez, as bases culturais
de desigualdade se refletem nestas instâncias, já
que, devido às diversas funções que a
mulher desempenha, não têm oportunidade de participar
dos espaços políticos de discussão e
dos partidos e, desta forma, no momento das eleições
ficam em desvantagem. "Claro que a cota somente, neste
caso, não resolve, mas é um passo. É
preciso ter financiamentos e estímulos para que a mulher
possa exercer esse seu direito", comenta a ministra,
destacando que essa luta pelo direito das mulheres deve ser
assumida fortemente pelas mulheres.
"É claro que é bom ver a sensibilização
dos homens pela causa, mas essa luta é nossa. Temos
que nos mobilizar para fazer com que a comunidade perceba
que a não incorporação das mulheres em
todos os meios é prejuízo não só
para nós, mas para toda a sociedade", completa.
Em São Paulo, algumas mulheres já perceberam
a importância dessa mobilização e, desde
2002, organizam o Fórum Permanente de Mulheres. As
mulheres, tanto de entidades, movimentos sociais ou por conta
própria, participam mensalmente de encontros para discutir
o espaço doméstico, qual o seu papel na família
e ações de profissionalização
para garantir a sua autonomia. O Fórum trabalha com
quatro enfoques: saúde, educação, geração
de emprego e renda e violência.
"O desafio maior é gerar renda para que elas
possam sair desta situação de violência",
comenta Marli Ferraz Bonfim, coordenadora do Fórum.
Mercado de trabalho desigual
O mercado de trabalho é hoje um retrato de
que as desigualdades entre homens e mulheres persistem na
sociedade brasileira. Apesar de representarem mais de 45,3%
da população economicamente ativa, segundo estimativas
do IBGE para abril de 2004, e representarem 38% dos efetivamente
ocupados, as mulheres recebem 31% a menos que os homens, mesmo
tendo um nível de escolaridade superior ao deles.
Observe-se ainda que, na população economicamente
ativa com ensino superior, 52,3% são mulheres e, na
população ocupada, 35,4% das mulheres têm
11 anos ou mais de estudo, enquanto a parcela dos homens nessa
condição é de 24,8%. Essa situação
não se reflete na composição dos quadros
de liderança das empresas. Entre 1985 e 1995, 12 milhões
de novas trabalhadoras ingressaram no mercado de trabalho.
No entanto, a maioria em condições bem mais
precárias do que os homens: 54% das que trabalham não
tem carteira assinada. A jornada de trabalho das mulheres
também ficou mais extensa. Elas precisam trabalhar
por mais horas para garantir o sustento da família.
As mulheres negras (pretas e pardas) estão em condições
ainda piores do que as não negras (brancas e amarelas).
De acordo com os dados preliminares da Pesquisa Mensal de
Emprego e Desemprego divulgada pelo IBGE em junho de 2004,
as mulheres brancas (incluindo as amarelas) ganhavam, em média,
20,5% menos do que os homens brancos (incluindo os amarelos),
enquanto as mulheres negras (pretas e pardas) ganhavam em
média 19,4% menos do que os homens negros (pretos e
pardos) e 61,2% menos do que os homens brancos.
As mulheres são a maioria (53,9%) entre os que ganham
entre meio e um salário mínimo por mês.
Quanto mais cresce o salário, menor é a participação
feminina. Na faixa acima dos que ganham até 30 salários
mínimos, elas são minoria, mal passando de um
quinto dos trabalhadores. A ocupação feminina
se concentra em algumas atividades, principalmente no setor
de serviços (29%), de acordo com dados do Diesse, de
2001, como administração pública, saúde,
ensino, serviços comunitários, serviços
pessoais e comunicação.
Ou seja, ainda permanece uma visão de que algumas
carreiras devem ser exercidas por homens e outras são
melhores para as mulheres. Na indústria de transformação,
as mulheres são apenas 9% da mão-de-obra, e,
mesmo assim, estão, em sua grande maioria, nos segmentos
mais tradicionais, como vestuário e alimentação.
Hoje, 4,8 milhões de mulheres são empregadas
domésticas. No meio rural, as mulheres são maioria
entre os que trabalham sem remuneração, em atividades
para o próprio consumo ou na produção
familiar.
A insatisfação por parte das trabalhadoras
é evidente. De acordo com o manual da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), lançado no dia 1º
setembro, em Genebra, com o Índice de Segurança
Econômica e Felicidade no Mundo do Trabalho, as mulheres
enfrentam maior insegurança econômica do que
os homens e, por isso, são mais infelizes no trabalho.
São as mulheres que enfrentam maiores problemas para
procurar um emprego e menor regularidade no pagamento, pois,
na maior parte das vezes, o salário é transferido
diretamente para o marido ou outro membro da família.
A falta de oportunidades e acesso das mulheres ao mundo
do trabalho perpassa o dia-a-dia das grandes empresas do país.
Há ainda muito que se avançar na promoção
da diversidade de gênero. Essa é a conclusão
da pesquisa 'Perfil social, racial e de gênero das 500
maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas',
realizada pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade
Social em parceria com a Escola de Administração
de Empresas de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas (FGV-EAESP), o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo de Desenvolvimento
das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), lançada
no final de 2003.
De acordo com o estudo, há uma dificuldade das mulheres
conseguirem ascensão aos postos mais altos da empresa.
O índice de participação das mulheres
na diretoria é de apenas 9%. Esses percentuais aumentam
à medida que se desce na escala hierárquica.
As mulheres formam 28% do nível de supervisão
e 35% do quadro funcional. Apenas 98 empresas da amostra afirmam
ter mulheres no quadro executivo, o que resulta numa média
de 3,5 diretoras por empresa.
A mulher negra é ainda mais desvalorizada. Em números
absolutos: de 6.016 mulheres existentes na gerência,
só 372 são negras (pretas ou pardas); entre
as 339 mulheres do quadro executivo, há apenas três
mulheres negras. Além disso, poucas empresas têm
políticas definidas de promoção de diversidade
étnica ou de gênero. Essas dificuldades, no entanto,
não são percebidas por todos. Numa pesquisa
realizada pelo Observatório Social em uma grande empresa
de São Paulo, apenas 10% dos homens reconheceram que
as mulheres têm uma carreira mais dificultosa enquanto
40% das mulheres achavam que têm uma carreira difícil,
pois precisam mostrar que são muito boas naquilo que
fazem para serem reconhecidas.
De acordo com a advogada Daniela Ikawa, coordenadora do
Programa de Clínicas Legais da SUR - Rede Universitária
de Direitos Humanos, e colaboradora da elaboração
do primeiro relatório brasileiro apresentado ao Comitê
pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, a discriminação no mercado
de trabalho ocorre ainda pelo não reconhecimento de
peculiaridades da condição de gênero,
como a maternidade. "Essa é uma discriminação
que tem início no âmbito privado, isto é,
na resistência a uma re-divisão de papéis
que sobrecarrega a mulher e a força a uma escolha entre
a participação na arena pública e a consecução
de seus deveres", observa.
Há uma legislação de proteção
às grávidas, mas, na prática, muitas
vezes, as mulheres deixam de ser admitidas ou promovidas por
causa da possibilidade de gestação. "As
empresas ainda não conseguiram desmistificar que a
maternidade não tem custo. Outro fator preocupante
é o fato de que as mulheres são as maiores vítimas
de doenças ocupacionais, devido ao trabalho que realizam
e, muitas vezes, são demitidas por estes problemas",
comenta Neusa Barbosa de Lima, da Secretaria Nacional de Políticas
para a Mulher da Força Sindical, durante o lançamento
da publicação "O Compromisso das Empresas
com a Valorização das Mulheres", em 1º
de setembro, em São Paulo. Ela ressalta ainda que,
em diversos momentos, as cláusulas que abordam a questão
de equidade de gênero são consideradas supérfluas
pelos sindicatos patronais.
Outro fator de desvantagem para as mulheres trabalhadoras
é a dupla jornada do trabalho devido às tarefas
domésticas e o cuidado com os filhos que, ainda, são
atribuições especialmente maternas. Em média,
as mulheres trabalham cerca de 4h30 por dia a mais em outros
afazeres que não do seu emprego, enquanto os homens
trabalham 1h15 a mais. Além disso, as mulheres contam
com o apoio e colaboração de outras mulheres
para realizar estas tarefas.
O desafio, no entanto, não está somente em
conseguir uma vaga numa empresa ou a possibilidade de ter
um plano de carreira e um salário condizente com a
sua capacidade. Muitos são os casos em que as mulheres
precisam ainda enfrentar o assédio e desrespeito de
seus colegas profissionais homens. "Esse é um
assunto que precisa mais atenção por parte das
empresas. O assédio moral ou sexual gera efeitos profundos
na vida profissional e pessoal destas mulheres, prejudicando
sua auto-estima e autovalorização. Casos como
estes são difíceis de serem comprovados, mas,
o primeiro passo, é que as empresas acreditem nas denúncias,
quando ocorrerem, antes de ficarem pedindo provas concretas",
destaca Júnia Puglia.
Na opinião de Júnia, o setor empresarial precisa
promover ações para a equidade de gênero,
não somente devido a uma preocupação
em praticar a responsabilidade social, mas por ser esta uma
questão de justiça. "É necessário
acelerar este processo para que as mulheres, que têm
um importante papel na produção de riquezas,
tenham o lugar que merecem no mundo do trabalho, na sua formação
e nas suas próprias atividades empreendedoras".
José Carlos Ferreira, da OIT, também durante
o lançamento da publicação, afirmou que,
devido a esta postura discriminatória das empresas,
há um desperdício de conhecimento. A diversidade
em todas as instâncias da empresa tem se traduzido,
segundo o manual, em equipes mais eficientes, em funcionários
mais satisfeitos e em redução da rotatividade.
O representante da OIT acredita que é necessário
que as empresas respeitem o direito de livre associação
dos funcionários e estimulem as funcionárias
a participar das organizações de trabalhadores
internas da empresa. Este é um dos dez compromissos
apontados pela publicação como essenciais para
a valorização das mulheres. Outros compromissos
são: garantir salários iguais para funções
iguais ou equivalentes; assegurar que a participação
das mulheres nos órgãos de direção
seja proporcional ao total de mulheres do quadro funcional;
entre outros.
Dormindo com o inimigo
Uma das piores formas de violação de
Direitos Humanos, a violência contra as mulheres, ganha
proporções que assustam pela gravidade e extensão
do problema que atinge todos os países do mundo. As
Nações Unidas definem violência contra
a mulher como: "Qualquer ato de violência baseado
na diferença de gênero, que resulte em sofrimentos
e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher;
inclusive ameaças de tais atos, coerção
e privação da liberdade seja na vida pública
ou privada".
Segundo o relatório da Anistia Internacional, apresentado
em março deste ano, juntamente com o lançamento
da campanha "Acabe com a Violência Contra as Mulheres",
uma em cada três mulheres sofrerá algum tipo
de violência sexual durante sua vida. De acordo com
a Anistia Internacional, na maior parte dos casos, o agressor
é ou será algum parente ou conhecido da vítima.
O relatório aponta que, se colocássemos o
mundo numa aldeia global de mil pessoas, a violência
contra as mulheres se representaria da segunda forma: 500
seriam mulheres. Deveriam ser 510, mas 10 nunca chegaram a
nascer devido a abordo seletivo em função do
sexo ou acabaram morrendo na infância devido ao abandono;
300 são mulheres asiáticas; 105 analfabetas;
145 mulheres vivem com menos de um dólar por dia; ?167
recebem surras ou estão expostas a sofrer algum tipo
de violência durante a vida; e 100 mulheres sofrem violação
ou intensa violação durante sua vida.
A violência se dá no âmbito público
- nos Estados Unidos, se violenta uma mulher a cada 90 segundos
- e no âmbito privado: 47% das mulheres têm sua
primeira relação à força e mais
de 70% das mulheres são vitimas de assassinato por
seus companheiros ou cônjuges. Na Europa essa violência
doméstica fica mais evidente. Ela é a maior
causa de morte entre mulheres de 16 a 44 anos, superando o
câncer e acidentes trágicos.
A violência contra as mulheres passa ainda pelas práticas
nocivas mantidas ao longo dos anos pelas culturas tradicionais.
Segundo o relatório, mais de 135 milhões de
meninas e mulheres foram submetidas à mutilação
genital e mais outras dois milhões correm perigo de
serem submetidas a esta pratica a cada ano, cerca de 6 mil
a cada dia.
No Brasil, a situação não é
tão diferente e reproduz a violência praticada
no resto do mundo. A pesquisa da Fundação Perseu
Abramo - A Mulher Brasileira nos Espaços Público
e Privado, realizada em 2001, indicou que 11% das mulheres
acima dos 15 anos, o equivalente a 7 milhões de brasileiras,
já foram agredidas ao menos uma vez. Os casos que aparecem
nas delegacias de polícia envolvem, em sua maioria,
a população mais pobre. No entanto, pelo menos
20% dos casos de violência contra as mulheres ocorrem
nas classes média e alta. Estima-se que a cada 15 segundos
uma mulher é agredida, normalmente em seu lar, por
uma pessoa com quem mantém relação afetiva.
A violência doméstica custa ao país cerca
de 10,5% do seu PIB.
As causas da violência, principalmente a doméstica,
são diversas e complexas, mas, de acordo com Susane
Mailloux, coordenadora da Casa Sofia, entidade da zona Sul
de São Paulo, que atende cerca de 200 mulheres vítimas
de violência por mês, a educação
diferenciada e, principalmente a cultura machista, que garante
aos homens poder sobre as mulheres, é ainda o principal
motivo deste quadro de violência.
Para Célia Regina Zapparolli, advogada e presidente
da organização Pró-Mulher Família
e Cidadania, "a forma de enfrentamento dos conflitos
tem um caráter cultural também. Em algumas culturas,
como a nossa, o bater, o gritar, o ofender acabam justificados
e, corriqueiramente, os envolvidos no contexto ou em determinados
grupos, nem se apercebem que certas situações
ou atitudes são violência. A desqualificação,
o abandono, a negligência e o preconceito são
violência, uma violência muito mais sutil, pouco
reconhecida como violência pelos nossos padrões
sociais e culturais".
A advogada ressalta que a violência familiar não
escolhe classe social, idade ou sexo, mas que existem fatores
que a favorecem, como as drogas, o álcool, a situação
de miserabilidade, entre outros, "que derivam de aspectos
e de um contexto psicológico, social e jurídico.
E, sem o enfrentamento dessas questões é quase
impossível se administrar e solucionar esse tipo de
violência".
Os impactos dessa violência na vida das mulheres também
são profundos, prejudicando sua saúde física
e mental, principalmente a auto-estima. Susane conta que,
em sua grande maioria, as mulheres passam de 10 a 15 anos
sofrendo caladas antes de buscar ajuda ou apoio para sair
dessa situação de violência. Desta forma,
quando chegam à entidade, já estão muito
comprometidas psicologicamente e emocionalmente abaladas.
"Normalmente, elas vão tentando ajeitar a situação
e acham que isso um dia vai mudar. O problema é que
os filhos também são afetados, pois ela reproduz
a agressão que sofre", comenta.
Por medo de represálias, falta de independência
econômica e dependência afetiva, ou por preocupação
com os filhos, a mulher não denuncia a violência.
Segundo um estudo da Organização Mundial da
Saúde, em 2002, de 20 a 70% das mulheres que haviam
sido abusadas não contaram nada a ninguém até
serem entrevistadas pela entidade. No Egito, por exemplo,
47% das mulheres vítimas de violência também
não relataram o ocorrido e, no Chile, somente 3% destas
mulheres foram à polícia. A impunidade e a falta
de uma legislação eficaz são agravantes
e favorecem a continuidade da violência.
A presidente da Pró-Mulher explica que o procedimento
judicial a ser observado deve levar em conta o tipo penal
e a natureza da lesão. No caso da violência intrafamiliar,
"hoje, se a lesão for leve, será observado
o procedimento da lei 9.099/95 (dos Juizados Especiais) através
do qual, pela estrutura estatal hoje implantada, na maioria
das vezes, num primeiro processo, ocorre simplesmente a transação
(o acordo) penal ou a condenação a cestas básicas
ou serviços comunitários desconectados do ato
anti-social praticado, sem possibilitar-se a ressocialização
ou reflexão do agressor sobre o ato ofensivo. Já,
se a lesão for grave e o tipo penal permitir, o procedimento
e a pena serão bem mais rígidos, com previsão
da pena restritiva de liberdade, inclusive diante de eventual
júri popular". O problema, na opinião da
advogada, é que a grande maioria dos atos de violência
intrafamiliar são processados sob o rito da lei 9.099/95,
o que, da forma até hoje posta, acaba sendo desmoralizador
e ineficaz.
Júnia Puglia acredita que, da forma que a lei está
sendo aplicada, há uma banalização da
violência. Susane ressalta ainda que, apesar de ter
aumentado o número de Delegacias de Mulheres, o atendimento
não é também adequado. Hoje, não
há abrigos e entidades especializadas suficientes para
receber com qualidade estas mulheres. "Muitas vezes,
as próprias funcionárias da delegacia não
encorajam as mulheres a denunciar. Elas perguntam: 'você
tem certeza de que quer fazer isso?'. Além disso, em
alguns momentos são as mulheres que recebem a intimação
para entregar ao seu agressor, neste caso companheiro ou marido,
para que vão depor. Ou seja, não sabem do seus
direitos e não exigem que isso seja feito pela delegada.
Desta forma, acabam se colocando em risco novamente",
aponta a coordenadora da Casa Sofia.
Uma das ações desenvolvidas pela Pró-Mulher,
em conjunto com o Juizado Especial Criminal de Família
Central, é a elaboração do projeto piloto
"Íntegra", que procura mudar o modelo atual,
das cestas básicas e de acordos desconectados do ato
praticado. A proposta é promover uma atuação
interdisciplinar: mediação, jurídica
e psicossocial, levando-se o indivíduo a refletir sobre
suas ações, propiciando a ressocialização,
a modificação do contexto, com o atendimento
e acolhimento da vítima e seus familiares.
Na opinião das especialistas, a lei mostrou que,
se o problema for abordado somente nos méritos criminal
e judicial, o quadro não irá se reverter. Sendo
assim, as especialistas acreditam que é necessário
um trabalho em conjunto, com todos os envolvidos, seja vítima
ou agressor. A Pró-Mulher, por exemplo, introduziu
um método próprio da Mediação
Familiar Interdisciplinar, que não é reconciliação,
mas um meio não adversativo de administração
de conflitos. Com isso, a evasão dos usuários
reduziu-se de 70 a 18 %. A advogada Célia Zapparolli
afirma que, hoje, muitos homens participam das atividades
de acompanhamento e, em diversos casos, procuram a organização
como prevenção. São mais de 13 mil atendimentos,
tanto de homens como mulheres, por ano na entidade.
DANIELE PRÓSPERO
do site Setor3
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