O nosso
maior desafio é: demandas sociais só tendem
a aumentar, e recursos para investimentos, a diminuir
Duas cenas, quase simultâneas, ocorridas na quarta-feira
passada, resumem com extraordinária precisão
o maior desafio brasileiro.
1) Em Brasília, mais precisamente no Senado, foi aprovado
um pacote de aumentos para o funcionalismo público,
enviado pelo governo, que custará anualmente R$ 5,3
bilhões -quase 70% de todo o gasto do Bolsa-Família,
um benefício que atinge algo como 40 milhões
de pessoas.
2) Em São Paulo, nas escadarias do museu do Ipiranga,
lançou-se o maior movimento já registrado, no
país, pela melhoria da educação. Composto
por alguns dos mais importantes empresários brasileiros,
esse movimento se compromete a pressionar permanentemente
os governantes, o que, em essência, significa mais verbas.
O desafio, sintetizado nas duas cenas, é: as demandas
da sociedade só tendem a aumentar, e os recursos para
investimentos, a diminuir.
Tal embate é o que vai ocupar o tempo do próximo
presidente e dos governadores. Se continuarmos crescendo tão
pouco por muito mais tempo -e com gastos públicos de
tão baixa qualidade-, as cidades simplesmente ficarão
ainda mais violentas. A mais importante questão que
se coloca é qual nosso limite de suportar tanta insegurança.
Em São Paulo, nunca se prendeu tanta gente e, mesmo
assim, aumenta o número de seqüestros relâmpagos.
Na capital, são 320 por mês. O PCC fez com que
nunca nos sentíssemos tão vulneráveis.
Se as duas cenas indicam nosso maior problema, elas também
mostram uma porta de saída. A crise de segurança
nas ruas, acompanhada pela persistência de altos níveis
de desemprego, vai ajudando a consolidar alguns consensos.
Apenas se derrotou a inflação depois de anos
de construção de um consenso sobre o déficit
público e, por isso, se aprovaram medidas como a Lei
de Responsabilidade Fiscal e a venda de bancos estaduais.
Assim como só se eliminou o regime militar depois que
os principais grupos de pressão viram que a democracia
era o melhor mecanismo de resolução de conflitos.
Quando os mais importantes empresários brasileiros
resolvem, pela primeira vez em nossa história, estabelecer
uma agenda de longo prazo para melhorar a qualidade de ensino,
constrói-se uma concepção de nação,
na qual se valoriza o capital humano -um tema que, também
pela primeira vez, apareceu com destaque máximo no
discurso dos candidatos.
Juntam-se aqui dois fatores: a paz social (pessoas sem educação
tendem à marginalidade) e o crescimento econômico
(a produtividade das empresas depende da qualificação
da mão-de-obra). Um dos fatores que levaram ao movimento
abolicionista, além da indignação moral,
era a percepção de que os escravos não
satisfaziam as novas demandas econômicas.
Um dos fatos mais interessantes destas eleições
é a visão disseminada, à direita e à
esquerda, de que o Estado se transformou num obstáculo
ao crescimento, ao produzir juros e impostos altos, sem contrapartida
em bons serviços e mais investimentos. Esses obstáculos
crescem a cada cena como a que vimos, na quarta-feira, em
Brasília.
Lula beneficiou-se, até aqui, da ampliação
do Bolsa-Família e do aumento do salário mínimo.
Foi o que compensou, em larga escala, o crescimento ridículo
da economia. Conseguirá aumentar esses recursos, sabendo
que eles não param de ampliar o rombo das aposentadorias
e que incham os gastos correntes?
Lula sabe dos riscos de um segundo mandato. Basta mirar-se
em Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente virou motivo
de desgaste para os candidatos do PSDB, que o afastaram de
sua propaganda eleitoral. Se não tivesse tentado um
segundo mandato, provavelmente seria hoje reverenciado como
o indivíduo que derrotou a inflação e
criou programas sociais, e não como aquele que gerou
desemprego.
Não existe alternativa. Para sobreviver politicamente,
o próximo presidente terá de se desgastar para
fazer o Estado gastar melhor -ou o desgaste será, no
final, ainda maior.
P.S. - A cena do museu do Ipiranga deveria ser um motivo
de orgulho para os brasileiros, mais especialmente para os
paulistanos. A cidade foi descuidada pelo PT, que a deixou
repleta de dívidas e obras inacabadas. Logo em seguida,
foi menosprezada pelo PSDB, que a usou como trampolim para
pretensões presidenciais. E, enfim, ficou acuada pelo
terror do PCC. Diante do descuido do PT, do menosprezo do
PSDB e da selvageria do PCC, organizou-se aqui uma bela resposta
-estabelecer a educação como a nova declaração
de independência do país. É o fato mais
interessante até aqui nestas eleições.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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