|
Proposta de valorizar a reflexão
crítica na seleção para a USP terá
impacto positivo em todo o país
A decisão da Universidade de São Paulo, anunciada
na semana passada, de valorizar a reflexão crítica
nos seus testes de vestibular é uma notícia
extraordinária -é uma proposta que vai além
do vestibular e de São Paulo. Isso porque deve mexer
no cotidiano das escolas em geral, exigir mais de alunos e
reciclar os professores, resultando em um impacto positivo
em toda a educação brasileira. Em essência,
a proposta é medir menos o conhecimento acumulado em
cada disciplina, como química, física ou história,
do que a habilidade em relacionar dados. É o que os
educadores chamam de questões interdisciplinares. A
nota é conferida, portanto, não pela informação
sobre um assunto específico, mas pela sua relação
com as demais matérias. Isso significa que uma pergunta
sobre o aquecimento do planeta provocado pelo efeito estufa
pode exigir o domínio do estudante em química,
física, matemática, história, biologia
e, quem sabe, literatura. Por que, afinal, essa mistura teria
tanto efeito não só no vestibular mas em toda
a educação?
Em primeiro lugar, porque a USP é uma das instituições
universitárias mais renomadas nacionalmente, e, por
isso, seu vestibular é um dos mais disputados por candidatos
de todo o país. Em segundo -e mais importante-, é
porque o modelo de teste anunciado, embora sem maiores detalhes,
abala a estrutura curricular do ensino médio e se estende
ao fundamental. Atualmente, o vestibular da USP demanda um
imenso acúmulo de informações dos candidatos.
Por exemplo: o aluno tem de estudar, em história, da
pré-história a fatos contemporâneos, chegando
ao mensalão. Educadores reclamam há muito tempo,
e com boa dose de razão, que não conseguem aprofundar
os tópicos. Sei como os professores mais sérios
tentam escapar desse esquema cruel, propõem atividades
mais conectadas ao cotidiano, estimulam a realização
de projetos. Mas estão conscientes de que, se os alunos
não entrarem nas melhores faculdades, a escola será
trucidada pelos pais. É perverso e ignorante, mas é
assim que funciona. Para atender às demandas de entrada
na universidade, o currículo se divide em disciplinas
que, na maioria das vezes, não se comunicam. Concluído
o vestibular, os alunos esquecem o que aprenderam, por falta
de utilidade. Em poucas palavras, ensina-se muita coisa desnecessária,
pela simples razão de que informação
só tem valor quando revelamos sua utilidade -ou se
gera prazer. Faça, caro leitor, um teste: tente lembrar
o que aprendeu sobre a tabela periódica.
O problema mesmo é a desconexão entre as exigências
do mercado e o sistema rígido de disciplinas. Os responsáveis
pelos departamentos de recursos humanos repetem sem parar
que as empresas querem indivíduos criativos, capazes
de trafegar pelas mais diversas áreas do saber. Exigem-se
autonomia de pesquisa, capacidade de trabalhar em grupo e
empreendedorismo. São pessoas que, em suma, respondem
aos problemas com rapidez -e os problemas envolvem uma série
de fatores inter e multidisciplinares. Isso não está
nem remotamente próximo do bitolado que só aprende
a pensar de forma fragmentada.
Se tal modelo de vestibular vai exigir muito das escolas privadas,
mais ainda será exigido das públicas. A habilidade
de associação de dados dos alunos vem, em boa
parte, da base familiar (famílias leitoras são
fundamentais), do estímulo a programas extracurriculares
e da vivência cultural. Daí que o sonho de inclusão
dos mais pobres nas universidades, além de eventuais
benefícios com pontuações diferentes,
terá de manter na agenda projetos de escola em tempo
integral e da montagem de conexões entre a sala de
aula e a cultura e a vivência comunitária, como
se fossem um único ambiente de aprendizagem. Será
cada vez mais papel das escolas públicas fazer essas
conexões e treinar profissionais para essa tarefa.
Até se conseguirá, aqui e ali, reduzir as exigências
para entrar no ensino superior, mas dificilmente tais facilidades
serão extensivas ao mercado de trabalho. A exclusão
seria, assim, apenas questão de tempo.
P.S- Quem ensina a melhor forma de ajudar os pobres, sem demagogia,
é a Embraer, que criou uma escola de ensino médio
gratuita selecionando alunos de instituições
públicas. Devido à sua altíssima qualidade
de ensino, eles estão entrando nas melhores universidades.
É isso o que deveria ser disseminado pelo país.
Tais unidades poderiam ser centros de experimentação
para influenciar toda a rede pública, como foram, no
passado, as escolas de aplicação e os centros
vocacionais. É uma pena que a USP tenha cogitado, mas
abandonado projeto parecido.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
|