O envenenamento de dez animais do Zoológico de
São Paulo provocou, na semana passada, comoção
nacional -o que, pelo ineditismo da tragédia, é
compreensível.
Mas quase ninguém se incomodou
com a denúncia, comprovada por documentos oficiais,
de que prefeitos desviam dinheiro da merenda escolar e fazem
crianças passarem fome.
A morte dos animais comove todo um
país, mas a fome das crianças, vítimas
da bandalheira, é encarada como se fosse uma coisa
normal, rotineira, com a qual ninguém mais se espanta
e à qual ninguém presta atenção.
Até
sexta-feira, investigadores especulavam se, por trás
da matança, não haveria um maníaco, uma
espécie de "serial killer" ecológico.
Quem, afinal, seria tão perverso a ponto de matar inofensivos
chimpanzés, dromedários, antas e mesmo uma elefanta?
Acompanhou-se atentamente, com direito
a amplas reportagens nas TVs, rádios e jornais, o drama
psicológico dos animais. Os sobreviventes, agora sem
seus companheiros de jaula, correm o risco, como advertem
os especialistas, de sofrer traumas provocados pela perda.
"Eles podem se sentir tristes e parar de se alimentar",
disse a bióloga Fátima ValenteRoberti, funcionária
do zoológico há 13 anos.
A maior preocupação
era provocada pela chimpanzé Fafá, pela elefanta
Teresita e pelo dromedário Laoviah. Fafá e Teresita
perderam os companheiros e ficaram sozinhas na jaula; o dromedário
tornou-se órfão.
Na terça-feira, uma reportagem
publicada pela Folha informou que, em todo o país,
centenas de milhares de crianças passam fome porque
prefeitos desviam, desperdiçam ou não sabem
gerir recursos da merenda escolar. Não houve nenhuma
repercussão, nenhuma indignação -como
se fosse mais estranha a morte de dez animais do que a dos
milhares de crianças famintas por causa de roubalheira
e de incompetência de políticos.
Com base em relatório da Controladoria
Geral da União, fundamentado em auditorias realizadas
em 350 municípios, constataram-se irregularidades as
mais diversas em 45% das licitações para a compra
de merenda escolar ou dos pagamentos dos produtos. Antes disso,
o Tribunal de Contas da União fez investigações
e chegou a resultados ainda piores.
Em 40% das escolas desses municípios,
a merenda não chegou aos alunos em, pelo menos, dez
dias por ano. Em 10% delas, em pelo menos dois dias por mês,
faltou comida. Como se sabe, para muitas das crianças,
a merenda é a principal refeição do dia.
Mas o melhor exemplo do grau de esculhambação
com verbas sociais, na semana passada, não veio de
um remoto município, mas foi dado pelo governo Lula.
A Folha revelou que foram tirados R$ 297 milhões do
orçamento do Peti (Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil); sobraram R$ 100 milhões.
Diante da explosiva denúncia,
o governo, vamos reconhecer, agiu rapidamente e voltou atrás.
Há, porém, uma questão óbvia:
como ninguém dentro da máquina pública
conseguiu perceber que, transferindo R$ 300 milhões,
o Peti iria parar? Não se está falando aqui
de R$ 30 milhões, mas de R$ 300 milhões.
Traduzindo melhor: com essa diferença
a menos, deixariam de ser atendidas 330 mil crianças,
que recebem uma bolsa mensal para ficar longe do trabalho
e perto da escola.
Note-se que o tema sempre foi uma das principais preocupações
de Lula -imagine se não fosse.
Se esse tipo de deslize ocorre em
Brasília (interferindo num tema tão importante
para o PT), calcule as falhas de gestão de verbas sociais
no resto do país, onde os controles são bem
menores.
Não é novidade dizer
que, no Brasil, se gasta mal o dinheiro de projetos sociais
apesar de todos os avanços. Esse mesmo tipo de auditoria
encontra resultados semelhantes quando realizado em várias
outras áreas. É o caso da saúde, por
exemplo.
Quanto mais pobre o município,
menor o controle comunitário e maior a oportunidade
de desvio. Ou seja, quem mais precisa é quem menos
recebe.
Como não é novidade,
ninguém se espanta com isso e o assunto nem de longe
comove tanto quanto a morte dos dez animais do zoológico.
Não é preciso ser um
estatístico para estimar que o custo da má gestão
e da roubalheira de verbas sociais implica a perda de vidas.
Posso garantir que morrem bem mais (aliás, muitíssimo
mais) de dez crianças por dia vítimas da irresponsabilidade
pública. Se vivessem em jaulas num zoológico,
talvez merecessem mais atenção.
Nos dez primeiros dias deste mês,
por exemplo, só na UTI neonatal do Hospital Universitário
da Alagoas morreram sete recém-nascidos, três
deles com baixo peso. Quando essa coluna sair no domingo,
a seguir esse ritmo, já teremos o mesmo número
de mortes do zoológico -só que quase ninguém
vai se escandalizar com isso.
PS - Por falar em bichos e escândalo,
um notável exemplo de como o país ainda está
indefeso diante das falcatruas foi o que se viu na semana
passada. Segundo a denúncia da revista "Época",
Waldomiro Diniz, que tomava dinheiro de bicheiros e transferia
parte ao PT, forjava concorrências públicas e
conseguiu transformar-se na ponte entre o Palácio do
Planalto e o Congresso, negociando emendas parlamentares e
cargos. Só fico imaginando como o PT viraria agora
uma fera se estivesse na oposição.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, na editoria
Cotidiano.
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