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Terça-feira,
15 de fevereiro de 2005. A data é um marco tragicômico
na história do Brasil.
Montado numa plataforma de generosidade com o dinheiro público,
estimada em R$ 110 milhões para os parlamentares -aumento
de salários e mais verbas para seus gabinetes, o deputado
Severino Cavalcanti elegeu-se presidente da Câmara.
Poucos momentos depois do final da votação na
Câmara dos Deputados, 1.111 entidades promoveram uma
das maiores manifestações de que se tem notícia
contra o aumento de impostos. Daquele encontro, em São
Paulo, saiu um manifesto, em meio a mãos dadas ao som
do hino nacional, para combater os gastos públicos
e aumentar a participação da sociedade civil
nas decisões oficiais.
A distância política de Brasília diante
do resto do país é muito maior do que a geográfica
-foi o que se sintetizou magistralmente na terça-feira.
Naquele dia, o Congresso, com a vitória de suas reivindicações
corporativas, parecia mais próximo do castelo de Chantilly,
na França, onde uma modelo e um jogador de futebol
se alimentavam de futilidades, do que da guerra entre PMs
e sem-teto em Goiânia, a poucos quilômetros de
Brasília.
Propor aumentar vantagens de deputados num momento como este,
quando a crise social é tão aguda e ninguém
agüenta transferir mais dinheiro ao governo, sugere mesmo
um clima de fantasia de história de castelo. Ou, então,
de baixaria, como a que foi protagonizada por duas modelos
que transformaram diferenças da vida amorosa em brigas
públicas, o episódio mais noticiado de um casamento
cujo custo ficou em cerca de R$ 2,5 milhões. Uma ninharia,
convenhamos, ao lado dos R$ 110 milhões de Severino,
defensor da idéia de que um parlamentar tenha 90 dias
de férias.
Há algum tempo, nota-se no país um movimento
de rebelião contra essa mistura de aumento de impostos
com desperdício de recursos públicos. Quanto
mais subiam os tributos, maior era a irritação
com os desperdícios, que se disseminam, numa espécie
de metástase, nos três níveis de poder:
federal, estadual e municipal.
Vou dar um exemplo de desperdício que sintetiza todos
os demais. Periodicamente, realizam-se avaliações
oficiais sobre o desempenho dos alunos do ensino básico
da rede pública, ou seja, daqueles que usam o dinheiro
pago pelo contribuinte, que, como se sabe, trabalha, em média,
mais de três meses apenas para bancar as contas do governo.
Fixem esta porcentagem: apenas 3% dos alunos da rede pública
exibem um nível de aprendizado considerado adequado.
Vamos enfatizar: 97% não aprendem o que deveriam aprender.
Podem colocar quanto quiserem de chantilly nesse fato, que
não fica nem remotamente doce.
Somam-se, assim, dois fatos: excesso de impostos e carência
de resultados. Se pudéssemos nos orgulhar e tirar proveito
dos serviços públicos, para muitos os tributos
não provocariam tanto incômodo -afinal, seria
apenas uma troca. Além dos tributos, pagam-se mensalidade
escolar, planos de saúde privados, fundos de aposentadoria,
segurança da rua. Para andarmos em boas estradas, temos
de pagar pedágio.
O governo torra o dinheiro quase só com funcionalismo
e juros da dívida; o retorno, portanto, é baixíssimo.
Ainda somos obrigados a ficar de auto-estima elevada porque
somos estimulados a acreditar que, afinal, o melhor do Brasil
é o brasileiro.
Mesmo que o retorno do imposto fosse razoável (o que,
por enquanto, é uma hipótese remota), há
mais uma questão a levantar. Será que esse nível
de taxação, num país pobre, não
torna mais difícil para as empresas expandir-se e gerar
empregos?
Afinal, a mais elementar garantia de desenvolvimento social
é o emprego e o salário. Um país que
gera poucos empregos produz miséria e, nesse caso,
as políticas assistenciais e sociais têm baixo
impacto. Ninguém sabe quando (nem se) conseguiremos
reduzir os programas de distribuição de bolsas
aos mais pobres; sem crescimento econômico e melhoria
da educação, distribuição de bolsas
é uma bengala permanente.
A terça-feira, 15 de maio, é o marco de uma
rebelião nacional que tende a aumentar. Vimos, na planície,
a sociedade se organizar para poder trabalhar e gerar riquezas
e, no planalto, o poder se fechar em seus privilégios.
Por sinal, naquele castelo francês, inventou-se o creme
chantilly para agradar à corte do rei Luís 14,
com seu enorme séquito de nobres desocupados. Todos
sabem como acabaram, anos depois, os nobres, quando veio uma
revolução para cortar os privilégios
da corte que levaram à falência as finanças
públicas.
PS - Podem apostar. A agenda que vai acabar, mais cedo ou
mais tarde, encantando o brasileiro é simples: gastar
menos e melhor. Esse é o caminho para o país
produzir mais e melhor. O resto é tentar cobrir a pobreza
com chantilly.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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