Expulsa
de casa, ela desistiu de estudar direito. E hoje não
quer deixar a direção da escola que tornou modelo
A família estava reunida, tensa, na sala de estar da
casa em Ribeirão Preto. Militar da reserva, o pai dirigiu-se
a Maria de Fátima, uma de suas filhas, e a expulsou
de casa, aos berros. "Você é um câncer
na minha vida." Então com 17 anos, ela militava
na esquerda católica, apoiava a derrubada do regime
militar, vociferava contra a tortura -e sempre enfrentava
a ira paterna. Naquele dia, carregando essa frase de despedida,
ela se tornou mais uma migrante desempregada a chegar à
cidade de São Paulo. "Tive de abandonar meu sonho
de estudar direito." Pelos caminhos mais diversos, acabou
ajudando a reinventar uma escola.
Para sobreviver, formou-se técnica em contabilidade
e, tempos depois, virou arrimo de família -o pai desapareceu.
Maria de Fátima não gostava do que fazia, achava
aquelas contas, frias, um desperdício de tempo. Lembrava-se
de sua adolescência. Era uma aluna tão aplicada
que sempre a chamavam, na falta de um professor, a dar aula.
Enquanto ia suportando a contabilidade, estudava, à
noite, pedagogia. Até que decidiu jogar tudo para o
alto, concorreu a uma vaga de professora na rede municipal
e se meteu na periferia. "Apesar de todas as dificuldades,
estava mais feliz." Em 1997, foi dirigir, na Vila Madalena,
a Olavo Pezzotti, grudada ao "mangue", a zona de
cortiços conhecida pela violência.
A escola era praticamente desconhecida até a recente
divulgação do teste nacional (Prova Brasil)
de matemática e língua portuguesa, no qual seus
resultados não só foram muito acima da média
da cidade de São Paulo mas superaram os das capitais
que ficaram em primeiro lugar. "Só fiz o óbvio."
O "óbvio" significou estabelecer uma rede
de contatos nas redondezas para que os estudantes usufruíssem
de serviços de saúde, cultura, lazer e esporte,
além de reforço escolar -uma rede que engloba
o centro de saúde, entidades religiosas, consultórios
de psicólogos e psicopedagogos, escolas de dança,
ACM, Sesc, o Brincante, de Antônio Nóbrega, e
o Centro Cultural Tomie Ohtake.
Para aprender a lidar com os portadores de deficiência,
ela bateu às portas da USP e da PUC, universidades
próximas da Vila, para que ajudassem a formar seus
professores. De contato em contato, Maria de Fátima
fez de todo o bairro um espaço integrado de aprendizagem,
uma espécie de sala de aula a céu aberto.
"Não gastei nada, apenas saí batendo na
porta de quem podia ajudar." A divulgação
das notas da Prova Brasil está levando uma romaria
de pais e educadores para a escola -os pais para tentar encontrar
uma matrícula para os filhos; os educadores para entender
como a Olavo Pezzotti trabalha. "Agora vejo que valeu
a pena não ter estudado direito."
Essa movimentação está mudando os planos
de Maria de Fátima, agora com 54 anos, que também
acha que não vale a pena vestir o pijama. Poderia se
aposentar. "Sou mais feliz assim." Para quem chegou
a esse estágio da vida, metido numa escola pública,
com tantas dificuldades, querer continuar em sala de aula
é um raro prazer.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
|