Vincenzo
buscava, em seus desenhos, extrair beleza do caos paulistano,
assim como fazia na luta contra o câncer
Submetido a vários meses de sessões de quimioterapia,
o designer gráfico Vincenzo Scarpellini aproveitava
o tempo disponível no hospital para desenhar e contar
a história de personagens anônimos enfrentando
a morte. Era um misto de diário de viagem, notas autobiográficas
e reportagem sobre uma dimensão quase invisível
da solidão cotidiana. "Desenhar era um jeito de
resistir", dizia, na condição de paciente.
Como artista, porém, aprendia a descobrir a beleza
estética na resistência à dor. "É
a vontade de seguir em frente que mostra nossos limites."
Sua tragédia tinha um toque irônico.
Nascido em uma pacata cidade medieval italiana com 60 mil
habitantes (Ascoli Piceno), Vincenzo procurava, em seus desenhos,
extrair beleza do caos paulistano -assim como fazia no hospital.
Preferia morar no centro da cidade. "Daqui eu sinto toda
a energia paulistana."
Esse olhar produzia estranheza. "As intervenções
de Vincenzo causaram ruído em meio ao noticiário
cinzento. Elas nos davam notícias diferentes da cidade.
Notícias necessárias. Falavam de casos e coisas
que escapam aos olhos e ouvidos que se atropelam nas urgências
da metrópole. Criaram um oásis", comentou
o escritor Marçal Aquino, um dos observadores da paisagem
caótica da cidade.
Vincenzo insistia na idéia de que era possível
ver o belo nesse tumulto -talvez por seu olhar estrangeiro.
"São Paulo é uma cidade que não
se quer ver, que procura fugir de si mesma." Ele ia buscando
ângulos e formas inusitadas urbanas, enquanto colecionava
casos de personagens longe do mundo das celebridades. O câncer
levou-o a virar um desses seres anônimos, invisíveis
num hospital, obrigados a encarar o pior de uma cidade. Natural,
portanto, que tivesse, nos desenhos, de se retratar, esquálido,
quase irreconhecível. "Os instantes em que estamos
bem tornam o viver muito mais belo. Qualquer coisa vale comemoração.
Um raio de sol entrando pela janela, por exemplo. Uma flor
perdida num canteiro sem graça."
Depois do fracasso de medicamentos tradicionais, testou remédios
em fase de experiência -uma chance para desenhar seu
novo médico. Com esses remédios, Vincenzo teve
alguns momentos de esperança, a tal ponto que chegou
a viajar para Nova York. Mas, na volta, parou na Itália
e sentiu-se mal. Imaginou que estaria mais seguro na cidade
que adotou do que na terra em que nasceu. Preferiu retornar
a São Paulo, de onde, no hospital, reclamava da estética
neoclássica de prédios novos. "É
um horror." No sábado passado, a guerra acabou.
Tinha pedido para que doassem o coração e os
olhos. O coração já não servia.
Mais do que seus olhos, acabou doando um olhar.
P.S. - Sinto-me um pouco herdeiro desse olhar. Por vários
anos, Vincenzo dividiu a coluna neste espaço. Com seus
desenhos, aprendi a descobrir uma cidade e o encanto de seus
personagens anônimos, capazes de mostrar a beleza pela
resistência. Talvez seja mesmo a única forma
de olhar a beleza nesta cidade.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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