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Depois
de ter o filho assassinado há quatro anos, Maria de
Fátima Rodrigues viu-se às voltas com uma contabilidade
macabra.
Seu filho Anderson, de 17 anos, fazia parte de uma turma de
20 amigos, todos envolvidos com drogas e marcados para morrer.
Sobrou apenas um, que está preso. "Fui fazendo
as contas porque virei uma espécie de conselheira emocional",
diz Maria de Fátima.
Mães de amigos de Anderson que foram abatidos a tiros
começaram a procurar Maria de Fátima em busca
de consolo. Aos poucos, ia surgindo um grupo que se encontrava
regularmente para compartilhar a dor e aprender a viver com
a sensação de perda. "Somos hoje 19 mães",
diz ela, uma líder comunitária da zona leste,
em São Paulo.
Acostumada a testemunhar, em sua região, os mais diversos
tipos de brutalidade, ela se deparou, há pouco tempo,
com um sinal exótico da cultura da violência.
Um sobrinho pediu-lhe que espalhasse pelo bairro uma mentira
-a de que ele seria parente do traficante Fernandinho Beira-Mar.
Intrigada, quis saber a razão do pedido. O menino explicou:
"Assim vamos ser respeitados e ninguém vai mexer
com a gente".
A contabilidade trágica de Maria de Fátima é
mais precisa do que a estatística, fria, sem rostos,
divulgada na quinta-feira passada pelo IBGE -a de que existem
cada vez mais mulheres do que homens no Brasil.
De 1992 a 2003, registrou-se um aumento de 57% na diferença
entre a quantidade de homens e a de mulheres. É uma
diferença provocada, pelo menos em parte, pela epidemia
da violência. Desde 1990, foram assassinadas cerca de
700 mil pessoas no país, a imensa maioria delas constituída
de homens jovens, que não tiveram o direito de crescer.
Nessa Terra do Nunca, perdem-se futuros maridos porque se
perdem os filhos.
Para quem mora em São Paulo, a tradução
da estatística veio acompanhada, na semana passada,
da sonoplastia e da coreografia da Febem. Tomamos conhecimento
de uma série de rebeliões seguidas realizadas
pelos adolescentes. São cenas que nos fazem lembrar
de que, apesar de cada um deles custar R$ 1.700 mensais aos
cofres públicos, muitos estão não só
longe da recuperação mas, possivelmente, piores
do que estavam antes.
É impossível entender o drama de Maria de Fátima
e de suas amigas sem mencionar pelo menos mais duas estatísticas
divulgadas na quinta-feira pelo IBGE: a queda da renda dos
trabalhadores nas regiões metropolitanas e, mais importante,
a taxa de desemprego entre os jovens.
A renda dos trabalhadores, de 1996 a 2003, chegou, em algumas
regiões metropolitanas, a cair até 42%; em Salvador,
a queda foi de 33% e, em São Paulo, foi de 27%. Por
aí se percebe uma leve medida do aumento da pobreza.
A taxa média de desemprego, em 2003, foi de 9,7%. Entre
jovens, é quase o dobro: 18%. Para entender a dimensão
que assumiu a violência, temos de ir mais fundo e prestar
atenção ao desemprego entre os jovens de baixa
escolaridade que vivem nas regiões periféricas.
Aí encontramos os guetos de desalento, nos quais faz
sentido o pedido do garoto para ser conhecido como parente
de Fernandinho Beira-Mar.
Apesar desse caráter explosivo das grandes cidades,
inexistem políticas metropolitanas que estabeleçam
programas conjuntos entre prefeitos, governadores e o presidente
da República. Há alguns exemplos em andamento
-o mais fértil deles na região do ABCD, em São
Paulo, onde os prefeitos se uniram para cuidar de problemas
comuns. Aliás, em Diadema, naquela região, os
índices de violência vêm-se reduzindo expressivamente
graças ao lançamento de programas interdisciplinares
para os jovens.
Soma-se à falta de articulação metropolitana
a fragilidade de programas de inclusão de jovens combinada
com a baixa qualidade do ensino público. Vai entrar
para a história o desabafo de Lula ao tomar conhecimento
da situação de escolas na Baixada Fluminense.
"Se a escola estiver assim, estamos desgraçados
neste país." Evidentemente estava.
À contabilidade macabra de Maria de Fátima e
de suas amigas de perda, soma-se outra violência, que
é o fato de o principal debate político brasileiro
estar centrado na proposta de aumento dos salários
dos parlamentares. É algo que, por suas repercussões,
vai custar mais de R$ 1 bilhão aos cofres públicos
-exatamente o que o Ministério da Educação
está pedindo para que o ensino médio público
não entre em colapso.
PS - O que me incomoda especialmente na Febem é um
fato óbvio: existem no país, a começar
de São Paulo, unidades em que não existem rebeliões
e em que os jovens conseguem aprender e voltar à sociedade.
São espaços pequenos e os internos estão
próximos da família, além de receberem
tratamento psicológico e educacional. O complexo do
Tatuapé segue a trilha do fracasso previsível.
Mesmo assim, sou obrigado a reconhecer como algo extraordinário
a demissão, de uma só vez, de centenas de monitores
suspeitos de envolvimento em casos de prática de maus-tratos
e em rebeliões. Merece também elogios a decisão
de tentar diminuir o número de adolescentes presos,
oferecendo-lhes semiliberdade. O governo tem de fazer no Tatuapé
exatamente o que fez no Carandiru: botar abaixo e fazer dali
um parque.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, na editoria
Cotidiano.
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