Como
Ribeirão Bonito criou mecanismos de fiscalização
do poder público e até pôs um prefeito
corrupto na cadeia
Se o país quiser inibir fraudes como as dos sanguessugas,
terá de prestar atenção na experiência
de Ribeirão Bonito, uma cidade de 12 mil habitantes
no interior de São Paulo. Nessa experiência,
desmonta-se uma ilusão -a de que se vai conseguir combater
a corrupção e o desperdício, generalizados,
apostando em governantes com discursos salvacionistas ou na
eficiência da polícia e do Judiciário.
Investigações feitas por amostragem pela Controladoria
Geral da União revelam irregularidades em 90% dos convênios
da União com os municípios. É uma profusão
de descalabros: superfaturamento de preços, benefícios
a familiares de prefeitos, baixa qualidade dos produtos e
serviços adquiridos, obras pagas e não entregues.
É comum ver computadores escolares encaixotados por
anos; compram-se livros quando se poderia obtê-los gratuitamente
nos programas oficiais de estímulo à leitura.
E estamos falando apenas dos convênios federais.
É preciso ser desinformado para imaginar que uns poucos
indivíduos na Polícia Federal, tribunais de
contas ou Ministério Público conseguirão
dar conta desse serviço. Na maioria das vezes, o combate
à corrupção resvala mais para o show,
amplificado pelos meios de comunicação, do que
para a montagem de mecanismos eficazes para evitar a roubalheira.
Por isso, sugiro atenção à microscópica
fórmula de Ribeirão Bonito, onde tudo começou
por causa de uma nostalgia -e virou uma cartilha contra a
corrupção.
Nos seus tempos áureos, Ribeirão Bonito, de
imigração italiana, beneficiava-se do café.
Sua população, na época, contava com
25 mil moradores -mais que o dobro do atual número
de habitantes. Além da agricultura, surgiam fábricas.
Oferecia-se ali um bom nível de educação
pública. Muitos saíram da cidade, entraram nas
melhores faculdades e se tornaram profissionais de sucesso,
respeitados nas suas áreas. Nunca mais voltaram a morar
lá. Em 2000, alguns desses profissionais, gratos pela
chance educacional que tiveram, começaram a se reunir
para revitalizar Ribeirão Bonito, estimulando uma vocação
econômica e preservando o patrimônio histórico.
Juntaram-se aos moradores e criaram uma associação
(Amarribo). Os planos mudaram de rumo. Perceberam que o prefeito
vinha dando sinais de enriquecimento incompatível com
sua renda. Um dos sinais era um carro de luxo que ele usava.
Souberam que seu veículo era de um fornecedor de carne
para as escolas. As merendeiras diziam, porém, que
quase não havia carne na refeição dos
alunos. Descobriu-se também que a prefeitura comprava
a gasolina para abastecer a frota oficial numa cidade de Minas,
bem longe dali. E por um preço mais caro do que a vendida
no posto em frente à prefeitura. Revelou-se assim uma
rede de falcatruas. Resolveu-se focar sua ação,
naquele momento, no desvio de recursos. Não era uma
batalha fácil. A população não
estava mobilizada nem interessada; o prefeito controlava quase
toda a Câmara e a imprensa.
Como o grupo de combatentes era composto de professores, contadores,
comunicadores e advogados (um dos advogados é José
Chizzotti, procurador aposentado do Estado), montou-se uma
operação de guerra: 1) coletaram-se os indícios
de desvio de dinheiro; 2) com base nessa coleta consistente,
a polícia, o Ministério Público e o Judiciário
foram acionados; 3) furando a barreira da mídia local,
divulgaram-se os fatos por meio de panfletos e convocaram-se
audiências públicas; 4) diante das evidências
e da pressão popular, os vereadores foram sensibilizados
para criar uma comissão de investigação
na Câmara.
O prefeito perdeu o cargo e acabou na cadeia. O mais importante
é que se criaram mecanismos permanentes de fiscalização
que já resultaram, por exemplo, na redução
e melhor aplicação de gastos públicos
-a Câmara passou a usar apenas 1,5% do orçamento
municipal, sendo que a lei permite até 8%. Desse embate,
surgiu uma cartilha para ensinar os cidadãos o passo
a passo na prevenção e no combate à corrupção.
P.S. - A fórmula de Ribeirão Bonito contra
os sanguessugas não tem mágica. É composta
por quatro ingredientes: 1) a qualificação educacional
dos indivíduos; 2) a disposição de trabalhar
em conjunto em cima de objetivos comuns; 3) sentir-se dono
da coisa pública e fiscalizá-la permanentemente,
o que exige uma noção de que cidadania é
não só direitos mas deveres; 4) não esperar
pelas autoridades para que sejam tomadas atitudes moralizadoras.
Em qualquer comunidade que use essa receita, a corrupção
provavelmente não acabará, mas será muito
mais difícil roubar e ficar impune.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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