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adeus, bandidagem
17/08/2004
Jovens contam como deixaram o mundo do crime

Motivo, cada um tem o seu. Pode ser a pressão familiar, o chamado de Jesus ou o medo de ser morto. Quem vive na vida bandida volta e meia pensa em pular fora do barco. Mas se ficar no movimento não é fácil, sair dele é ainda mais complicado. Especialmente sem algum tipo de ajuda. Muitos, porém, conseguem driblar as dificuldades e chegam lá. E garantem: é possível viver sem traficar – basta ter uma boa razão para mudar de vida.

No caso de Ronaldo Rangel Flores, de 32 anos, o primeiro motivo foi um princípio de overdose que o fez largar a cocaína. O segundo, foi sua atual mulher, que o fez largar a atividade. “Como o irmão dela também era do tráfico e não queria que a irmã namorasse bandido, eu quis provar que queria mudar. Resolvi parar de vez”. E parou.

No começo, foram os bicos: pintor, jardineiro, peão de obra. “Cantei até rap, como o MC Tico”, diz. Há três anos, arranjou finalmente um emprego na Fundação Parques Jardins, onde trabalha até hoje. E pôde encarar o casamento. A vida corre bem. Mas ainda ficaram as seqüelas da antiga vida. “Desde o princípio de overdose, meu coração não é mais o mesmo. Também perdi a cartilagem do nariz e quase não sinto mais cheiros. Mas nada disso importa se agora posso dormir tranqüilo”, garante.

Cheirava o salário em uma hora
Como tanto jovens pobres e sem alternativa profissional, Ronaldo começou no tráfico ainda na adolescência, aos 19. Era sua forma de alimentar o vício da cocaína. Ganhava, em média, R$ 250 por dia, dinheiro que sumia, consumido em papelotes. Houve ocasiões em que cheirou o salário inteiro da semana em apenas uma hora.

“Deixei o tráfico porque ia entrar pelo cano”, conta Ronaldo. Ele tem motivos para tanta certeza. No dia em que tomou a decisão e foi conversar com o chefe da boca, ouviu uma resposta curta e grossa. “Ele falou que ficava contente. Eu seria um a menos que ele teria que matar. É que de tanto cheirar, eu andava vacilando”, lembra. Isso tem mais de seis anos.

A violência era parte da rotina. Ronaldo chegou, por exemplo, a participar de rodas para bater em outros rapazes. Dormia em lajes e se espantava até com um gato que passasse. “No tráfico, tudo é risco. Se deixar, os caras que se dizem amigos armam uma cilada para pegar seu posto”, conta.

Havia, porém, o lado sedutor. Tinha mulher “a toda hora” e cheirava todos os dias: “Acordava com um canudo na mão e um baseado na orelha. Eu vivia num mundo louco”, resume. Como Ronaldo, vários rapazes da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, pensam diariamente em abandonar o tráfico. Quem consegue, vira exemplo para os demais.

Como André Luiz Silva, de 23 anos, integrante da Cooperativa Boca de Filmes. Na Cidade de Deus, ele já se tornou um espelho para muitos garotos. “Já tem um monte deles interessados em participar da próxima turma do Cine Maneiro, este ano”, diz. Segundo ele, o Boca de Filmes “lhe dá forças para enfrentar tudo”.

Cinema ajudou André a livrar-se da má fama
Em troca, a responsabilidade é grande. “Os comerciantes acreditam na gente, ajudam a cooperativa. Se vacilar, vou estar queimando todo o trabalho”, admite André. Um patrocínio da LAMSA (Linha Amarela S.A.) vai garantir ajuda de custo aos integrantes do Boca de Filmes pelos próximos dois anos.

A virada, porém, não foi nada fácil. Quando decidiu deixar o tráfico, André já tinha estrada. “Era vaporzinho, depois fui convidado a gerenciar uma boca-de-fumo. Eu colocava o terror. Muitos nem chegavam perto de mim por medo. Eu tinha uma fisionomia de gente ruim”, acredita.

Não por acaso, o rapaz levou um tempo para se livrar do estigma de bandido após passar três meses preso. Mesmo sendo julgado e absolvido. Para sua sorte, assim que foi solto surgiu a oportunidade de entrar para o Boca de Filmes. O que o ajudou na luta para se livrar do movimento e da má fama.

Demitido por ser ex-presidiário
André sabia que precisava levar a decisão a sério. “Ainda tinha gente que me chamava para voltar para a boca. Mas não podia ficar de palhaçada, lá e cá. Quem sai, tem que ficar fora”, diz. Parou de andar com os antigos amigos, não deu mais bobeira pelas ruas.

Ser conhecido pelos policiais que atuam na comunidade foi um peso a mais. “Era uma complicação. Quando eu ia até o Apê (área da Cidade de Deus) visitar um amigo, se passava um policial na rua, me chamava pelo apelido da boca. Isso me fazia morrer de medo que os traficantes da área me confundissem com um X-9”, conta.

Ele também sentiu o peso da decisão no bolso. Da grana alta da boca, passou a viver do dinheiro incerto de bicos, como servente de obras. “Corria atrás, mas era difícil. Arranjei emprego no Carrefour, mas quando souberam que eu era ex-presidiário, me mandaram embora”, conta. Mesmo assim não pensou em desistir: “O dinheiro do tráfico vem fácil, mas vai fácil. Prefiro a tranqüilidade de agora”.


Jonata: no começo, dinheiro e mulheres
No caso de Jonata Luís Soares, 22 anos, primo de André, foi também a opção pelo cinema que serviu de passaporte para sair do tráfico. Sua guinada começou quando o projeto Cine Maneiro surgiu na CDD, em 2002, oferecendo cursos de cinema. O rapaz agarrou a chance com unhas e dentes. As “missões” do tráfico haviam ficado para trás havia um ano.

“No começo, é uma maravilha: dinheiro, mulheres, facilidades. Depois, você passa a ver muita gente morrer”, conta. Jonata passara a viver de biscates. “Quando o projeto surgiu, fui atrás do cara que coordenava e abri o livro para ele, contei do antigo envolvimento". Na época, alguns rapazes da Cidade de Deus já tinham participando das gravações do filme Cidade de Deus. Tudo o que Jonata queria era tentar. "Pedi uma chance”, conta. Pediu e conseguiu. Depois do curso, entrou para a cooperativa formada pelos ex-alunos - a Boca de Filmes. Talentoso, hoje ele tem ainda outra fonte de renda - desenha paisagens em azulejos. Isso o a se manter distante da outra boca.

Preso aos onze
Muitas vezes, só mesmo a fé é capaz de 'salvar' quem já enveredou pelos caminhos do tráfico. Como aconteceu com o guardador Rogério Hanner Silva, 34, Desde que trocou a arma por uma Bíblia, há sete anos. Ele dá graças a Deus por tudo. “O Evangelho mudou minha vida”, resume. Criado em colégio interno desde a morte da mãe, aos seis anos, Rogério foi preso pela primeira vez aos 11, escapou da morte algumas vezes, mas nem por isso deixou de se envolver com o bando do Valzinho da Treze.

“Quando mataram o Zé Pequeno, eu já estava formado com os caras. Ganhei um revólver quando a Cidade de Deus entrou em guerra. Ia para os Apês dar tiros nos policiais”, conta. Os três anos de prisão não o fizeram mudar. “Escutei de muita gente que não tinha mais jeito”, conta.

A mudança veio aos 27 anos, por causa da mulher, a diarista Telma de Souza dos Santos, 33 anos. Ela lembra do sufoco que passou: “Eu não tinha paz; ele chegava drogado e me espancava. Num momento de fúria, chegou a queimar a mim e a meu filho, na época com um ano, com água quente”, conta.

Naquela noite, os próprios traficantes de seu grupo perguntaram a Telma se ela queria que ele fosse morto. Ela preferiu acreditar em sua recuperação e o arrastou à igreja. Lá, Rogério teve um único pensamento. “Ou o Senhor me conserta ou me leva”, pediu. Desde então ele mergulhou de cabeça na fé. "Tem gente que até acha que fiquei bonito”, fala Rogério.

O que ele ganha como flanelinha do Vaga Certa, num ponto da Barra, é para os gastos de casa. Mas ele também se orgulha de sua realização na igreja. “Quase não sei ler, mas tenho quatro CDs gravados. Dou meu testemunho em São Paulo e Minas, subo morros para evangelizar. Minha missão é essa”, garante. O apoio de Telma foi fundamental. “Ela foi uma enviada: nunca me abandonou, esteve sempre pedindo a Deus por mim. Se não fosse por ela, estaria morto”, admite.

Sai arma, entra caneta
Aos 22 anos, Vinícius Alvez da Silva também se orgulha do que faz. Especialmente do sucesso que anda fazendo com a música composta para o Bonde Faz Gostoso. Talento ele sempre teve, mas na época em que traficava (começou em 1998 e parou em 1999) não dava importância a isso.

As idéias para compor as músicas vinham das conversas com amigos. Mas ficavam no papel. “Eu tinha um caderno que era para eu escrever. Escrevia e deixava no cantinho”. Vinícius agora vive das canções que compõe. “Hoje, sou valorizado pelas músicas que faço. Comprei um carro e tenho vontade de viver honestamente. Debaixo do travesseiro, antes, ficava uma arma, agora só fica um pedaço de papel e uma caneta”, comemora.

MC Jack: discurso interrompeu briga em show
Foi um longo caminho entre sair do tráfico e encontrar o sucesso. No meio da trajetória, muitas dificuldades. Os sentimentos eram de vergonha e discriminação. Volta e meia, se envolvia até em brigas.

Mas a memória do tempo em que traficava era um estímulo e tanto. Quando estava no movimento, Vinicius trocava o dia pela noite e só andava armado. “Fui preso e quase morri. Me amarraram de cabeça para baixo e me afogaram num balde, e apanhei tanto que quase perdi o braço", conta ele, sem querer dar mais detalhes. "Minha mãe foi uma das que mais sofreram com a decepção em saber que eu já estava há um ano no tráfico. Mas não dava para sair do dia para noite".

Tudo isso ficou para trás. Vinicius agora é conhecido como MC Jack. Um episódio o marcou especialmente. Em seu primeiro show, a convite do rapper MV Bill, ele cantou em Curitiba para 2.500 pessoas. "Ao ver muitos jovens brigando, peguei o microfone e fiz um discurso contundente e eles pararam de brigar. Dizia inclusive, que estava cheio de mulher no baile e mandei elas vaiarem. Depois me dei conta do que fiz, do poder da música, da sensação de estar num palco. E percebi que o crime nem chegava perto de tudo isso. Isso me fez repensar a minha vida”, explica.


As informações são do site Viva Favela.

 
 
 

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