Motivo, cada um tem o seu. Pode
ser a pressão familiar, o chamado de Jesus ou o medo
de ser morto. Quem vive na vida bandida volta e meia pensa
em pular fora do barco. Mas se ficar no movimento não
é fácil, sair dele é ainda mais complicado.
Especialmente sem algum tipo de ajuda. Muitos, porém,
conseguem driblar as dificuldades e chegam lá. E garantem:
é possível viver sem traficar – basta
ter uma boa razão para mudar de vida.
No caso de Ronaldo Rangel Flores, de 32 anos, o primeiro
motivo foi um princípio de overdose que o fez largar
a cocaína. O segundo, foi sua atual mulher, que o fez
largar a atividade. “Como o irmão dela também
era do tráfico e não queria que a irmã
namorasse bandido, eu quis provar que queria mudar. Resolvi
parar de vez”. E parou.
No começo, foram os bicos: pintor, jardineiro, peão
de obra. “Cantei até rap, como o MC Tico”,
diz. Há três anos, arranjou finalmente um emprego
na Fundação Parques Jardins, onde trabalha até
hoje. E pôde encarar o casamento. A vida corre bem.
Mas ainda ficaram as seqüelas da antiga vida. “Desde
o princípio de overdose, meu coração
não é mais o mesmo. Também perdi a cartilagem
do nariz e quase não sinto mais cheiros. Mas nada disso
importa se agora posso dormir tranqüilo”, garante.
Cheirava o salário em uma hora
Como tanto jovens pobres e sem alternativa profissional,
Ronaldo começou no tráfico ainda na adolescência,
aos 19. Era sua forma de alimentar o vício da cocaína.
Ganhava, em média, R$ 250 por dia, dinheiro que sumia,
consumido em papelotes. Houve ocasiões em que cheirou
o salário inteiro da semana em apenas uma hora.
“Deixei o tráfico porque ia entrar pelo cano”,
conta Ronaldo. Ele tem motivos para tanta certeza. No dia
em que tomou a decisão e foi conversar com o chefe
da boca, ouviu uma resposta curta e grossa. “Ele falou
que ficava contente. Eu seria um a menos que ele teria que
matar. É que de tanto cheirar, eu andava vacilando”,
lembra. Isso tem mais de seis anos.
A violência era parte da rotina. Ronaldo chegou, por
exemplo, a participar de rodas para bater em outros rapazes.
Dormia em lajes e se espantava até com um gato que
passasse. “No tráfico, tudo é risco. Se
deixar, os caras que se dizem amigos armam uma cilada para
pegar seu posto”, conta.
Havia, porém, o lado sedutor. Tinha mulher “a
toda hora” e cheirava todos os dias: “Acordava
com um canudo na mão e um baseado na orelha. Eu vivia
num mundo louco”, resume. Como Ronaldo, vários
rapazes da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, pensam diariamente
em abandonar o tráfico. Quem consegue, vira exemplo
para os demais.
Como André Luiz Silva, de 23 anos, integrante da Cooperativa
Boca de Filmes. Na Cidade de Deus, ele já se tornou
um espelho para muitos garotos. “Já tem um monte
deles interessados em participar da próxima turma do
Cine Maneiro, este ano”, diz. Segundo ele, o Boca de
Filmes “lhe dá forças para enfrentar tudo”.
Cinema ajudou André a livrar-se da má fama
Em troca, a responsabilidade é grande. “Os
comerciantes acreditam na gente, ajudam a cooperativa. Se
vacilar, vou estar queimando todo o trabalho”, admite
André. Um patrocínio da LAMSA (Linha Amarela
S.A.) vai garantir ajuda de custo aos integrantes do Boca
de Filmes pelos próximos dois anos.
A virada, porém, não foi nada fácil.
Quando decidiu deixar o tráfico, André já
tinha estrada. “Era vaporzinho, depois fui convidado
a gerenciar uma boca-de-fumo. Eu colocava o terror. Muitos
nem chegavam perto de mim por medo. Eu tinha uma fisionomia
de gente ruim”, acredita.
Não por acaso, o rapaz levou um tempo para se livrar
do estigma de bandido após passar três meses
preso. Mesmo sendo julgado e absolvido. Para sua sorte, assim
que foi solto surgiu a oportunidade de entrar para o Boca
de Filmes. O que o ajudou na luta para se livrar do movimento
e da má fama.
Demitido por ser ex-presidiário
André sabia que precisava levar a decisão
a sério. “Ainda tinha gente que me chamava para
voltar para a boca. Mas não podia ficar de palhaçada,
lá e cá. Quem sai, tem que ficar fora”,
diz. Parou de andar com os antigos amigos, não deu
mais bobeira pelas ruas.
Ser conhecido pelos policiais que atuam na comunidade foi
um peso a mais. “Era uma complicação.
Quando eu ia até o Apê (área da Cidade
de Deus) visitar um amigo, se passava um policial na rua,
me chamava pelo apelido da boca. Isso me fazia morrer de medo
que os traficantes da área me confundissem com um X-9”,
conta.
Ele também sentiu o peso da decisão no bolso.
Da grana alta da boca, passou a viver do dinheiro incerto
de bicos, como servente de obras. “Corria atrás,
mas era difícil. Arranjei emprego no Carrefour, mas
quando souberam que eu era ex-presidiário, me mandaram
embora”, conta. Mesmo assim não pensou em desistir:
“O dinheiro do tráfico vem fácil, mas
vai fácil. Prefiro a tranqüilidade de agora”.
Jonata: no começo, dinheiro e mulheres
No caso de Jonata Luís Soares, 22 anos, primo de
André, foi também a opção pelo
cinema que serviu de passaporte para sair do tráfico.
Sua guinada começou quando o projeto Cine Maneiro surgiu
na CDD, em 2002, oferecendo cursos de cinema. O rapaz agarrou
a chance com unhas e dentes. As “missões”
do tráfico haviam ficado para trás havia um
ano.
“No começo, é uma maravilha: dinheiro,
mulheres, facilidades. Depois, você passa a ver muita
gente morrer”, conta. Jonata passara a viver de biscates.
“Quando o projeto surgiu, fui atrás do cara que
coordenava e abri o livro para ele, contei do antigo envolvimento".
Na época, alguns rapazes da Cidade de Deus já
tinham participando das gravações do filme Cidade
de Deus. Tudo o que Jonata queria era tentar. "Pedi uma
chance”, conta. Pediu e conseguiu. Depois do curso,
entrou para a cooperativa formada pelos ex-alunos - a Boca
de Filmes. Talentoso, hoje ele tem ainda outra fonte de renda
- desenha paisagens em azulejos. Isso o a se manter distante
da outra boca.
Preso aos onze
Muitas vezes, só mesmo a fé é capaz
de 'salvar' quem já enveredou pelos caminhos do tráfico.
Como aconteceu com o guardador Rogério Hanner Silva,
34, Desde que trocou a arma por uma Bíblia, há
sete anos. Ele dá graças a Deus por tudo. “O
Evangelho mudou minha vida”, resume. Criado em colégio
interno desde a morte da mãe, aos seis anos, Rogério
foi preso pela primeira vez aos 11, escapou da morte algumas
vezes, mas nem por isso deixou de se envolver com o bando
do Valzinho da Treze.
“Quando mataram o Zé Pequeno, eu já estava
formado com os caras. Ganhei um revólver quando a Cidade
de Deus entrou em guerra. Ia para os Apês dar tiros
nos policiais”, conta. Os três anos de prisão
não o fizeram mudar. “Escutei de muita gente
que não tinha mais jeito”, conta.
A mudança veio aos 27 anos, por causa da mulher, a
diarista Telma de Souza dos Santos, 33 anos. Ela lembra do
sufoco que passou: “Eu não tinha paz; ele chegava
drogado e me espancava. Num momento de fúria, chegou
a queimar a mim e a meu filho, na época com um ano,
com água quente”, conta.
Naquela noite, os próprios traficantes de seu grupo
perguntaram a Telma se ela queria que ele fosse morto. Ela
preferiu acreditar em sua recuperação e o arrastou
à igreja. Lá, Rogério teve um único
pensamento. “Ou o Senhor me conserta ou me leva”,
pediu. Desde então ele mergulhou de cabeça na
fé. "Tem gente que até acha que fiquei
bonito”, fala Rogério.
O que ele ganha como flanelinha do Vaga Certa, num ponto
da Barra, é para os gastos de casa. Mas ele também
se orgulha de sua realização na igreja. “Quase
não sei ler, mas tenho quatro CDs gravados. Dou meu
testemunho em São Paulo e Minas, subo morros para evangelizar.
Minha missão é essa”, garante. O apoio
de Telma foi fundamental. “Ela foi uma enviada: nunca
me abandonou, esteve sempre pedindo a Deus por mim. Se não
fosse por ela, estaria morto”, admite.
Sai arma, entra caneta
Aos 22 anos, Vinícius Alvez da Silva também
se orgulha do que faz. Especialmente do sucesso que anda fazendo
com a música composta para o Bonde Faz Gostoso. Talento
ele sempre teve, mas na época em que traficava (começou
em 1998 e parou em 1999) não dava importância
a isso.
As idéias para compor as músicas vinham das
conversas com amigos. Mas ficavam no papel. “Eu tinha
um caderno que era para eu escrever. Escrevia e deixava no
cantinho”. Vinícius agora vive das canções
que compõe. “Hoje, sou valorizado pelas músicas
que faço. Comprei um carro e tenho vontade de viver
honestamente. Debaixo do travesseiro, antes, ficava uma arma,
agora só fica um pedaço de papel e uma caneta”,
comemora.
MC Jack: discurso interrompeu briga em show
Foi um longo caminho entre sair do tráfico e encontrar
o sucesso. No meio da trajetória, muitas dificuldades.
Os sentimentos eram de vergonha e discriminação.
Volta e meia, se envolvia até em brigas.
Mas a memória do tempo em que traficava era um estímulo
e tanto. Quando estava no movimento, Vinicius trocava o dia
pela noite e só andava armado. “Fui preso e quase
morri. Me amarraram de cabeça para baixo e me afogaram
num balde, e apanhei tanto que quase perdi o braço",
conta ele, sem querer dar mais detalhes. "Minha mãe
foi uma das que mais sofreram com a decepção
em saber que eu já estava há um ano no tráfico.
Mas não dava para sair do dia para noite".
Tudo isso ficou para trás. Vinicius agora é
conhecido como MC Jack. Um episódio o marcou especialmente.
Em seu primeiro show, a convite do rapper MV Bill, ele cantou
em Curitiba para 2.500 pessoas. "Ao ver muitos jovens
brigando, peguei o microfone e fiz um discurso contundente
e eles pararam de brigar. Dizia inclusive, que estava cheio
de mulher no baile e mandei elas vaiarem. Depois me dei conta
do que fiz, do poder da música, da sensação
de estar num palco. E percebi que o crime nem chegava perto
de tudo isso. Isso me fez repensar a minha vida”, explica.
As informações são
do site Viva Favela.
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