Viajar é sempre sinônimo
de crescimento. Especialmente para um jovem que conhece um
país estrangeiro pela primeira vez. E isso vem acontecendo,
cada vez com mais frequência, com diversos moradores
de favelas cariocas. Eles conquistam a chance de sair do Brasil
com um passaporte muito especial: seu próprio talento.
A oportunidade surge a partir de convites para participarem
de congressos, bolsas de estudos e até alternativas
profissionais no exterior. Na volta, eles descobrem que as
viagens mundo afora aprofundam sua visão do próprio
país, do seu estado, da sua cidade mas, acima de tudo,
de sua própria comunidade. Ao invés de ‘olhar
para dentro para ser universal’, eles vão para
o mundo para conhecerem o próprio umbigo.
A bailarina Bárbara Melo, 18 anos, integrante há
sete anos do projeto Dançando pra não dançar
- que atua em dez favelas cariocas -, teve uma chance de causar
inveja a muito artista. Ela foi convidada para atuar na Staatlichen
Ballett Schule Berlin, por conta de sua participação
no projeto brasileiro, que promove aulas de balé clássico
para crianças e adolescentes em comunidades de baixa
renda do Rio de Janeiro. Está sendo uma experiência
inesquecível, diz Bárbara. Mas também
repleta de dificuldades.
Choque inicial
A realidade, adverte ela, nem sempre corresponde às
expectativas. “Profissionalmente é maravilhoso,
mas pessoalmente foi muito difícil no começo.
Achei tudo muito estranho. Estranhei o frio, a comida, o lugar,
a língua, estranhei tudo. Queria voltar no primeiro
dia. Falei: ‘Não, não é isso o
que eu quero. Quero meu pagode, meus amigos, minha praia de
volta’. Mas depois a gente vai se acostumando.”
A bailarina conta que sua maior dificuldade foi aprender
o idioma. “Eu dizia que nunca ia conseguir enrolar minha
língua daquele jeito. Mas era praticamente matar pra
comer. Era todo mundo falando alemão o tempo todo,
então eu tinha que aprender. E na escola era História
da Alemanha, geografia européia... hoje, eu já
sonho em alemão.”
Durante esses quatro anos de Alemanha, ela começou
a se dar conta de sua realidade anterior e da que tem hoje,
especialmente quando visitava o Brasil de férias. Hoje,
ela se diz plenamente adaptada a Berlim e ao seu estilo de
vida, com amigos, namorado e “dinheirinho no bolso”.
Uma verba que permite um padrão de vida bem razoável.
Thereza Aguilar, coordenadora do Dançando pra não
dançar, revela que as meninas recebem uma bolsa mensal
em torno de 640 euros, que deve cobrir os custos de alimentação,
hospedagem e plano de saúde.
Apesar da adaptação, a bailarina mostra-se
dividida. “Passei minha adolescência inteira lá,
mas não quero perder nunca o vínculo com as
pessoas daqui, com esse lugar”, diz, referindo-se à
comunidade do Cantagalo, na zona sul do Rio, onde nasceu e
cresceu.
Os jovens sabem que estão dando um passo muito grande
em suas vidas pessoais e profissionais. E experimentam sentimentos
contraditórios, que misturam euforia, ansiedade, alegria.
E, claro, também o medo. No caso de Tiago Nunes Costa,
de 16 anos, que deverá embarcar ainda esta semana para
Israel, a apreensão começa ao entrar no avião
- ele detesta a simples idéia de voar.
A ansiedade não pára por aí. Tiago está
apreensivo quanto ao seu futuro. Participante do projeto Gin
Esporte e Cidadania, que oferece aulas de futebol a crianças
e jovens de baixa renda do Rio, Tiago foi convidado, junto
com Thiago Fioravanti, 17, e Alexandre de Almeida, 16, para
fazer um teste em um time israelense. Caso sejam aprovados,
deverão ficar em Israel por um ano.
Medo do inesperado
O meio-campo Tiago, que mora em Vila Tiradentes, em São
João de Meriti, na Baixada Fluminense, teme ser reprovado.
“A gente fica sem saber o que pensar, não é?
E se a gente não passa e fica lá passando fome,
com frio, sem ter onde dormir. A gente não sabe como
falar lá, como é que vamos fazer para falar
com nossos parentes?”.
Parece absurdo, mas o temor tem lá sua razão
de ser. Segundo o coordenador do projeto, Giovanni Nogueira,
34 anos, já houve um caso semelhante há dois
anos, com dois atletas que foram convidados para treinar na
Holanda. “Infelizmente, tive que impedir a viagem. Eles
colocaram no contrato, em letras bem pequenas, que se os garotos
não fossem aprovados eles não pagariam a passagem
de volta.”
Nogueira acredita que isso não se repetirá.
E lembra que a decisão final é sempre dos pais
dos meninos - que também colocam grande expectativa
nos filhos, esperando que consigam uma boa remuneração.
Já o cabeça-de-área Alexandre Almeida
e o goleiro Thiago Fioravanti demonstram mais esperanças
em relação à viagem. Morador de Quintino,
na zona norte da cidade, Fioravanti não parece se abalar
nem mesmo com a política conturbada da região,
que é alvo de constantes atentados. “Guerra tem
em todo lugar. Aqui mesmo a gente vive em guerra civil, nos
morros, com o tráfico. Eu não vou deixar de
ir por causa disso.”
Remuneração é decisiva
Torcedor do Fluminense e admirador do goleiro Marcos, do Palmeiras,
Fioravanti diz que o maior problema será a saudade
da família. “Acho que isso vai ser complicado,
mas enquanto eu puder ajudar eles, eu vou ficando.”
Morador do Morro da Formiga, na Tijuca, Alexandre de Almeida
também ressalta a questão da remuneração
como uma das razões para aceitar a viagem. “Mesmo
não sendo muito, já vai dar pra ajudar minha
família.”
Cada adolescente receberá em euros o correspondente
a dois salários mínimos brasileiros. Hospedagem
e alimentação serão de responsabilidade
do próprio clube onde ficarem.
Viagem bem menos tensa foi a de Rafael Lima de Jesus, 16
anos, morador da favela Parque União, no Complexo da
Maré, Zona Norte do Rio. Durante uma semana, em abril,
ele esteve em Genebra, na Suíça. Conta, com
orgulho, que foi um dos dois jovens escolhidos em toda a América
Latina (o outro é da Venezuela) para participar do
Painel Consultivo Brasileiro na Convenção dos
Direitos para Crianças e Adolescentes da ONU, em Genebra,
na Suíça.
Estudante do Colégio Estadual Ruy Barbosa, Rafael
acredita que a estadia serviu, entre outras coisas, para ressaltar
sua noção de cidadania. “Fiquei impressionado
como as pessoas não jogam nada no chão. Elas
consideram que tudo o que é público é
delas. A gente aqui não tem muito isso, mas depois
que eu voltei nunca mais sujei as ruas.”
Noção de cidadania
O adolescente conta que, na Suiça, se comunicou
muito bem com seu amigo venezuelano. “A gente sempre
tinha uma intérprete por perto, mas quando ela não
estava, a gente se entendia. Como o espanhol é uma
espécie de português simplificado, foi fácil”,
esnoba.
A viagem também teve sua contrapartida social. “Acho
que passei para eles a minha realidade daqui, dos problemas
das pessoas da minha idade, da violência. E o participante
da Venezuela também acho que conseguiu isso. Só
eles terem noção das nossas dificuldades já
é importante.”
Integrantes do mesmo projeto de Bárbara, as bailarinas
Márcia Freire, 19, e Maria Aline, 16, embarcam no dia
28 de agosto para Cuba. Foram convidadas para passar um período
no Balé Nacional de Cuba. Márcia, na verdade,
volta a Cuba após um tempo de férias no Brasil,
onde aproveitou para cursar o primeiro período da faculdade
de dança e rever os parentes no Complexo do Pavão,
Pavãozinho, em Copacabana.
Depois de sete meses na escola cubana, ela lembra que ouviu
muitas histórias quando falou que iria para a ilha
mais famosa das Américas. “Falaram de tudo: que
eu iria ficar presa lá, que iria passar fome, um monte
de coisas. Mas resolvi me concentrar no balé, que era
o que eu queria para minha vida e pronto. Não pensei
em mais nada”, diz.
Márcia conta que, ao chegar, se surpreendeu com a
Cuba policiada, sem mendigos e analfabetos. “Era tudo
totalmente diferente do que me falaram, até o trânsito
é mais organizado do que aqui. Mas é outra cultura,
outra língua. Mesmo o espanhol sendo um pouco parecido,
eles têm um jeito de falar mais rapidinho, gingado”.
As informações são
do site Viva Favela.
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