Figuras femininas estão despontando
nos muros da cidades brasileiras. Estrelas, flores e outros
motivos coloridos de mulherzinha destoam dos traços
duros típicos do grafite masculino. Elas estão
chegando aos poucos, participando de uma oficina aqui e outra
ali. E começam a formar grupos, as crews, para planejar
suas “ações” - a grafitagem em locais
públicos. O movimento já atinge várias
capitais. Está online e, em breve, vai ganhar um cadastro
nacional reunindo as moças que gostam de desenhar no
muro.
É verdade que a presença da mulher no grafite
ainda é tímida. Mas há sinais por toda
parte de que isto já começou a mudar. No Rio,
um desses indicadores é o aumento de meninas inscritas
nas oficinas espalhadas por diversas comunidades da cidade,
em bairros como a Penha (Zona Norte), a Cidade de Deus e Bangu
(Zona Oeste).
Outro sinal claro foi o sucesso do I Encontro Feminino de
Grafite, realizado na Fundição Progresso, no
Centro do Rio, em julho. O evento serviu para que as artistas
urbanas novatas e veteranas da cidade pudessem se conhecer,
trocar experiências e formar uma rede.
"Desvirginamos várias meninas! Uma coisa é
fazer no papel, outra é meter a cara no muro com a
lata de jet", conta Maíra Botelho, a Ira, 20 anos,
moradora de Laranjeiras (Zona Sul) e uma das fundadoras do
'TPM Crew' junto com Marcela Zaroni, 26 anos, a Prima Donna,
moradora do Méier (Zona Norte).
O TPM, cujo significado tanto pode ser 'transgressão
pelas mulheres', como 'tinta para mim', conforme o humor das
integrantes, é uma espécie de pólo aglutinador
de grafiteiras. Suas criadoras fizeram um fotolog (um site
com fotos atualizado diariamente), estão organizando
uma lista de discussão na Internet e pretendem, em
breve, formar um cadastro com grafiteiras de todo o país.
Organizado pela fotógrafa Andrea Cals e pelas meninas
do TPM Crew, o evento reuniu cerca de 14 mulheres, número
bastante significativo, na avaliação das organizadoras.
Para elas, foi um divisor de águas na mobilização
da mulherada.
“O encontro foi primordial, mudou a vida de todas nós”,
avalia Vanessa Hanan, a Nêssa, 23 anos, moradora da
Tijuca (Zona Norte). Nêssa é namorada do grafiteiro
Carlos Esquivel, 26 anos, o Acme, e grafita há três
anos. É na oficina ministrada por Acme, todas as quartas-feiras,
às 19h , na Fundição, que elas se encontram
para treinar os traços e combinar as ações.
Jeito feminino de grafitar
Para quem conhece bem a arte do grafite e o estilo
de quem pratica, homens e mulheres se comportam de maneira
diferente. “Entre as mulheres há mais cooperação.
Os homens se juntam mas cada um faz o seu desenho separado”,
analisa Andrea, que fotografa grafite e acredita que esta
atividade seja um dos expoentes da arte contemporânea.
“As meninas são mais atentas e aprendem com
mais facilidade”, opina Elber Oliveira, 23 anos, o Bel.
Ele dá aulas para uma turma mista de 25 alunos na oficina
Já é, na sede da Revista Enfoco, na Cidade de
Deus. Suas oito alunas são mais assíduas que
os rapazes e aprendem com mais facilidade por serem menos
afoitas. Acme faz coro com Bel. “As meninas têm
mais jeito com o desenho, são mais delicadas. Mas na
hora de sair para a rua e ficar debaixo do sol, elas sofrem
um bocado”, avalia.
Gabriela Alves Viana, a Beg, 18 anos, moradora de Vila Aliança,
em Bangu, fez o seu primeiro desenho no encontro da Fundição.
“Há um ano e meio grafitava bombers (letras estilizadas)
e nunca tinha feito uma figura. No encontro, minha amiga Lisa
fez os bombers e eu desenhei uma boneca”, conta orgulhosa.
Sair para a rua para grafitar ainda é um desafio e
para evitar sustos elas preferem planejar as “ações”
em conjunto. Beg formou uma crew com outros grafiteiros de
seu bairro e está estimulando Gisele Alves Silveira,
a Lisa, 21 anos, a ser sua parceira no grupo.
“Quando comecei a curtir grafite, minha avó,
de 72 anos, com quem eu moro, dizia que era coisa do demônio
e implicava comigo, não me deixava sair”, conta
Beg que teve que mostrar para a avó a história
do grafite na Internet e provar que o que fazia não
era pichação, mas arte.
Atitude e vergonha
Uma outra característica feminina é
que muitas chegam até o grafite a partir de uma identificação
com o movimento hip hop. “Eles são mais ligados
ao grafite em si”, distingue a fotógrafa Andrea
Cals.
Cheias de atitude, elas enfrentam o preconceito dos garotos.
“Tem sempre alguém que diz que grafite é
coisa de homem, que a gente vai acabar virando sapatão”,
protesta Lisa. Mas na hora de mostrar o trabalho na parede,
é comum bater uma insegurança. É o caso
de Bianca Monteiro, a Bia, 18 anos, moradora de Duque de Caxias
(Baixada Fluminense). Ela, que começou no grafite depois
que conheceu a dança de rua e a cultura hip hop, tem
vários desenhos com uma linguagem visual de grafiteira
mas nunca teve coragem de levá-los para a parede. “Tenho
ainda dificuldade de traçar os desenhos com a lata
de jet, fico com medo de fazer algo errado”, revela.
O medo de errar e a vergonha de realizar um desenho que não
seja perfeito é comum. Até mesmo a experiente
Nêssa, que também compõe letras de rap,
só começou a superar suas dificuldades acrescentando
mensagens de conscientização aos desenhos do
namorado. “Não tenho muita prática em
desenho, então faço os bombers”, diz.
Mas nem sempre as meninas são estimuladas pelos colegas
de muro, que podem se sentir amedrontados com a concorrência.
“Eles vêem que não está bom e dizem
que está só para não ficar melhor que
o deles”, afirma Beg.
Cara a cara
A clandestinidade das ações é
um dos fatores que geram tensão na hora de realizar
um grafite. É comum uma ação ser interrompida
pela polícia e os planos serem modificados. “Depois
que mostrei o projeto do desenho, eles me liberaram. Fiquei
super nervosa. Depois voltaram para ver o que eu tinha ‘mandado’
e até elogiaram”, conta Beg sobre uma “dura”
que levou na Avenida Brasil.
Grafite e pichação são duas atividades
diferentes, mas são confundidas com freqüência.
O primeiro embeleza locais públicos deteriorados e
está ligado a mensagens positivas dentro da perspectiva
da cultura hip hop. O segundo é apenas uma maneira
de “marcar território” em fachadas e muros
de propriedades particulares, sem maiores significados e sem
qualquer ligação com a arte.
“Em minha primeira ação, íamos
‘mandar’ no muro de uma escola, mas o guarda mandou
parar. Ele até entendeu que não era piche, mas
a diretora da escola não quis nem saber”, lembra
Arlete Costa, a Pit, 19 anos, moradora da Rocinha (Zona Sul).
A desinformação e o perigo da exposição
na rua criam obstáculos para as mais jovens. “Fui
convidada para uma ação, mas não pude
ir”, lamenta Cláudia Gomes Rodrigues, a Claw,
15 anos, também moradora da Rocinha. Ela é a
única menina do grupo Rocinha Grafite e sente dificuldade
em convencer a mãe em deixá-la participar das
ações. “Ela me pergunta o que é
que eu vou fazer com um bando de garotos na rua, mas como
insisto muito, às vezes, acaba deixando”, conta
Claw.
Dificuldades não faltam na vida de grafiteiro. O preço
das tintas e do látex usado para criar fundos nos desenhos
é um dos principais problemas. Segundo Bel, são
necessárias cerca de 11 latas de tinta em spray e um
balde de látex de 3 litros para fazer um desenho simples
de 3 metros por 3 metros. Se forem comprados a varejo, cada
lata custará cerca de R$ 10 e o látex, R$ 15.
Desenhos grandes e multicoloridos demandam uma quantidade
ainda maior. “Precisamos de diversos tons da mesma cor
para dar volume”, explica Prima Donna.
Cada uma dá um jeito, descolando latas de presente
entre amigos, parentes e outros grafiteiros. “Trabalho
na associação de moradores de Camará
(Senador Camará, na Zona Oeste). Chega no fim do mês,
eu estou cheia de planos, mas sempre pinta um imprevisto e
acabo não podendo comprar”, diz Beg, que ajuda
sua avó em casa com as despesas de seus cinco irmãos.
Identidade feminina
Cores claras e chamativas são as preferidas
das grafiteiras que desenham formas femininas, bonecas e bichinhos.
“Queremos mostrar que é feito por mulher”,
revela Claw. Para Prima Donna, os temas escolhidos revelam
uma necessidade de identificação. “Somos
mulheres grafitando e temos algo a dizer”, analisa.
A preferência também pode ser explicada pela
facilidade do desenho. “Geralmente tomamos como referência
o nosso próprio corpo. Garotos fazem bonecos e garotas,
bonecas”, avalia Maíra, que acredita que ao longo
do tempo os temas vão se diversificar. Entre os projetos
coletivos do TPM Crew está um painel sobre meio ambiente.
Nem sempre existe uma justificativa feminista para explicar
os grafites. “Não sei bem por que faço
bonecas. Vou desenhando e vejo que as figuras têm traços
femininos”, confessa Beg. “Gosto de desenhar a
mulher em posições onde eu possa trabalhar as
sombras”, afirma Pit, sobre sua predileção
por um dos recursos gráficos.
Consciente ou inconsciente, a expressão artística
leva para os muros a visão das grafiteiras sobre o
universo feminino. “Para nós é importante
veicular imagens que representem nossas raízes étnicas,
procuramos fazer traços negros e cabelos cacheados”,
opina Prima Donna, sobre os grafites da TPM Crew. Contestar
padrões de beleza dominantes também é
uma estratégia. “Por que a mulher tem sempre
que ser representada como a gostosona?”, questiona Maíra,
justificando a imagem de uma gordinha sexy que ‘mandou’
nos arredores da Fundição Progresso.
Outra veterana, Carina Arsênio, a Nina, de 27 anos,
que há dez grafita em São Paulo, acredita que
existe um traço comum aos trabalhos realizados por
mulheres. “A mulher traz uma certa delicadeza e coloca
nas paredes aquilo que está em seu dia a dia, não
tem como fugir”, avalia. Em seu trabalho, o universo
feminino está sempre presente. “Represento uma
temática feminina a partir de um olhar infantil”,
afirma. Para ela é importante retratar aquilo que quase
não vê nas ruas, uma das motivações
para fazer uma mãe amamentando em sua última
visita ao Rio de Janeiro, na Rocinha.
Arte pela Paz
Transmitir alguma mensagem através de seus
desenhos é o objetivo de todas as grafiteiras. Críticas
ao governo, mensagens de paz, reivindicação
de direitos iguais para homens e mulheres são transpostos
para o muro. “Faço desenhos infantis para chamar
a atenção das crianças para outros caminhos
além da bandidagem”, explica Beg, que acredita
que grafitar pode ser uma maneira positiva de mobilizar as
crianças de sua comunidade.
É, ao jeito delas, a maneira encontrada para 'gerar'
consciência e modificar o comportamento 'rebelde sem
causas' da juventude. “Quando estou no muro, encontro
uma paz total. Acredito que qualquer forma de arte é
válida e chego a escrever essa mensagem junto aos desenhos”,
revela Lisa.
Para elas, não há planos de tornar a atividade
uma opção profissional. “Se vai dar futuro
ou não, vou ver depois. É meu hobby”,
avalia Beg, que desde que começou a andar por aí
com uma lata de jet está mais atenta às diversas
manifestações artísticas. Nas aulas de
grafite, elas aprendem noções de desenho, anatomia
humana e a criar uma variedade enorme de bombers.
MARINA LEAL
do site Beleza Pura
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