Cerca
de 20 mil crianças em todo o país estão
entregues a abrigos que, em sua esmagadora maioria, ainda
funcionam como os velhos orfanatos: enormes e impessoais,
afastam os abrigados do convívio comunitário
e familiar.
Aproximadamente 81% desses menores, porém, têm
família, mas pelo menos um em cada quatro deles lá
está porque os pais, por falta de condições
financeiras, não conseguem mantê-lo.
É o começo de um longo círculo vicioso.
Como não há políticas públicas
de apoio a essas famílias de origem, crianças
e adolescentes ficam até mais de uma década
nessas instituições -apesar de a internação
ser preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) como uma medida excepcional e necessariamente temporária.
O cenário -nada animador- está descrito numa
pesquisa feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) a pedido da Secretaria Especial de Direitos Humanos
em todas as 589 unidades de abrigamento da Rede SAC (Rede
de Serviços de Ação Continuada) -conjunto
de instituições que recebem verbas federais,
49,1% delas na região Sudeste e 34,1% no Estado de
São Paulo.
Divulgada ontem, a pesquisa do Ipea mostra, por exemplo,
que apenas 14,9% das unidades não têm mais nem
um vestígio do tratamento massificado vigente nos antigos
pavilhões dos orfanatos, onde até camas e escovas
de dente eram coletivas.
A situação é pior ainda no quesito "preservação
de vínculos familiares": só 6% das instituições
atendem ao "mínimo razoável" quando
o assunto é viabilizar visitas entre o menor e os parentes
e manter juntos os irmãos.
A Rede SAC, no entanto, atende a apenas 6% dos municípios
brasileiros onde, calcula-se, estão apenas 20% dos
abrigados. Fora dela, porém, não se tem nenhum
controle de quantos são nem de como funcionam os abrigos.
Desvio de finalidade
Para o secretário de Direitos Humanos, Nilmário
Miranda, que participou da divulgação do estudo,
no Rio, o principal dado evidenciado pela pesquisa é
o do "total desvirtuamento da função dos
abrigos".
Destinados a proteger crianças retiradas pela Justiça
de famílias desestruturadas -em geral, por violência
ou drogas-, eles se transformaram, hoje, em uma espécie
de auxílio social, já que 24,2% dos menores
lá estão exclusivamente devido à pobreza.
"Agora sabemos que por trás de uma criança
abrigada há, quase sempre, uma família abandonada
pelo Estado", resume Enid Rocha, coordenadora-geral da
pesquisa.
"Por isso, os abrigos não podem nem devem ser
vistos como os vilões, já que é a ausência
de políticas públicas voltadas para a estruturação
das famílias o que dificulta o enfoque de que eles
são apenas uma solução provisória",
afirma a coordenadora-geral.
A pesquisa mostra também que as instituições
são, de modo geral, não-governamentais (65%),
com significativa influência religiosa (67,2%), recentes
(58,6% delas têm menos de 15 anos) e financiados majoritariamente
por recursos privados (58,5%).
Ação em 120 dias
Se os abrigos não são raiz, mas reflexo de um
descompasso maior, cabe agora ao poder público tentar
reverter esse cenário. Para isso, o governo federal
anunciou -no mesmo ato de divulgação dos dados-
que, a partir do dia 29, começa a se reunir a Comissão
Interministerial de Direito à Convivência Familiar.
Ela terá 120 dias para apresentar propostas de ações
para o setor.
"A partir do levantamento, começamos a tirar
um grave problema do armário. Agora, pretendemos expor
a questão à sociedade, para que seja discutida
e incluída na agenda do país", disse o
secretário Nilmário Miranda.
SÍLVIA CORRÊA
ALESSANDRO FERREIRA
da Folha de S. Paulo
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