Depois
de o Conselho de Ensino de Graduação ter vetado
a implementação de um sistema de cotas na UFRJ
para o vestibular deste ano, uma deliberação
divulgada no fim da semana passada no site da Faculdade de
Medicina mostra o tamanho da resistência que o tema
encontra na maior universidade federal do Brasil. Pela primeira
vez no país, a congregação de um curso
se manifestou publicamente contra qualquer tipo de reserva
de vagas. A alegação é que a medida pode
afetar diretamente a qualidade do ensino, que em cinco edições
do Provão só obteve o conceito A.
"Com as cotas, só aumenta o risco de a precariedade
do ensino básico se refletir no ensino superior. No
curso de medicina, especificamente, os alunos precisam se
dedicar por seis anos em tempo integral à faculdade,
o que implica muitos gastos com livros, alimentação.
Hoje, praticamente não temos evasão, uma realidade
que mudaria muito com a reserva de vagas. Já nos dois
primeiros períodos, a falta de preparo dos alunos seria
um baque", afirmou o diretor da Faculdade de Medicina
da UFRJ, Almir Valladares.
A votação da deliberação foi
feita no fim do mês de julho e reuniu 32 membros da
congregação, entre professores titulares, chefes
dos dez departamentos, representantes de funcionários
e alunos. Todos os presentes foram contra qualquer proposta
de reserva de vagas na Faculdade de Medicina.
Apesar de não ter poder direto na decisão final
da universidade, a sugestão dada pela congregação
seria que a UFRJ oferecesse cursos preparatórios para
que alunos carentes pudessem ingressar por mérito no
ensino superior.
"Sempre trabalhamos com o mérito para o ingresso
na universidade e mudar isso vai ser muito difícil.
Nosso padrão vai deixar de existir. O foco precisaria
ser a qualidade do ensino básico", comenta o diretor-geral
do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Amâncio
Paulino de Carvalho.
Reunião
No início do ano, a Reitoria da UFRJ chegou
a apresentar uma proposta de reserva de 20% das vagas do vestibular
para alunos de escolas públicas, que ainda não
vingou internamente. Entusiasta da democratização
do acesso à universidade, o reitor Aloísio Teixeira
disse, através de sua assessoria de imprensa, que “respeita
a decisão da congregação e que cada colegiado
tem o direito de se manifestar”.
A atitude tomada pela congregação também
vai na contramão do pensamento do governo federal,
que encaminhou este ano ao Congresso um projeto de lei prevendo
cotas raciais e para estudantes que tenham cursado o ensino
médio na rede pública, com uma reserva de 50%
das vagas nas universidades federais. Representante do Ministério
da Educação (MEC) no Rio de Janeiro, William
Campos disse que pretende convocar uma reunião com
o colegiado da medicina:
"Uma decisão como esta me parece precipitada
e preconceituosa. O próprio projeto do governo federal
prevê que cada universidade terá 240 dias para
implantar o sistema de cotas após a aprovação
no Congresso. Ou seja, a discussão do tema é
muito importante. Pretendo me reunir com representantes da
faculdade para expor a nossa visão".
Rendimento dos cotistas
Na Uerj, o sistema de cotas já vem sendo implantado
há dois vestibulares e um estudo divulgado recentemente
pela universidade mostrou que a maior diferença no
índice de reprovação por notas tem sido
exatamente no Centro Biomédico. Entre os cotistas,
a média foi de 8,21%, enquanto entre os não-cotistas
foi de 1,84%.
Mas para o frei David dos Santos, coordenador da ONG Educafro,
que reúne cursos pré-vestibulares para alunos
carentes, tanto a decisão da UFRJ de não adotar
as cotas este ano quanto a deliberação da congregação
da medicina representam um grande retrocesso:
" A UFRJ sofre atualmente com uma grande falta de coesão.
Cada um puxa para um lado e a implantação das
cotas não anda. Acho que a universidade deve ter toda
a autonomia para decidir seu conteúdo acadêmico,
mas não deveria ter autonomia para excluir alunos".
Negro e morador de Bangu, na Zona Oeste, enquanto cursava
a Faculdade de Medicina da UFRJ na década de 70, o
hoje médico da Fiocruz Hermano Albuquerque de Castro,
de 46 anos, não tem dúvidas ao criticar a decisão
da congregação. Segundo ele, a atitude só
representa a intenção de a faculdade se manter
restrita a uma elite:
" É claro que precisamos melhorar o ensino básico,
mas é preciso uma medida imediata. Se houvesse uma
política de apoio, com cursos extras, o sistema iria
vingar".
Formado pelo Colégio Estadual Souza Aguiar, no Centro,
Hermano ainda se lembra bem dos tempos em que trabalhava,
estudava e ainda fazia aulas de reforço num pré-vestibular
em que conseguiu bolsa integral para chegar à tão
sonhada Faculdade de Medicina da UFRJ:
"Durante todos os anos de faculdade, só conheci
um ou dois colegas com um perfil igual ao meu. Foi um esforço
tremendo para chegar lá, mas meu pai sempre dizia que
tinha duas opções: ou estudava muito e virava
médico ou ia ser peão de obra".
Criada em 5 de novembro de 1808, com o nome de Escola de
Anatomia, Medicina e Cirurgia, a Faculdade de Medicina da
UFRJ é hoje uma das maiores do país. Pela unidade
no campus do Fundão passam 1.500 alunos por período,
que utilizam o Hospital Universitário Clementino Fraga
Filho em suas aulas práticas.
RUBEN BERTA
do jornal O Globo
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