Se o
viciado em crack, o nóia, está no nível
mais baixo da escala de tipos humanos, a viciada na droga
fica ainda mais abaixo. Só que, cada vez mais, há
mulheres dependentes de crack.
Para conhecer e trazer à tona o universo feminino do
crack, a psicobióloga Solange Nappo, do Centro Brasileiro
de Informações sobre Drogas psicotrópicas
(Cebrid) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
coordenou uma equipe que entrevistou 75 mulheres em São
Paulo e São José do Rio Preto, com mais de 14
anos, todas viciadas na droga.
Os depoimentos trouxeram importantes novidades para os pesquisadores.
A principal: o total de mulheres dependentes da droga está
crescendo dentro dos grupos de viciados. As mulheres também
estão se destacando como as principais provedoras de
crack para os companheiros do grupo. Em vez de roubar e se
arriscar fisicamente para obter dinheiro para o consumo, elas
podem faturar se prostituindo.
Tanto com clientes ou diretamente para traficantes, trocando
o corpo pela pedra. A prostituição parece vantajosa,
porque permite uma renda constante sem tantos atritos com
a polícia.
Os pesquisadores afirmam que, com essa transformação,
resultados sociais relevantes aparecem. Os problemas ligados
ao crack tendem a ficar mais restritos a um submundo que se
fecha em si mesmo. O vício dos homens se faz notar
mais facilmente porque eles roubam ou assaltam.
As mulheres, ao contrário, nem mesmo pelo medo conseguem
se impor ou se fazer notar. Mantêm-se submissas e passivas
para obter dinheiro da droga e não forçam ninguém
a nada. Precisam apenas aceitar convites dos homens que as
pagam. Se afundam e se destroem, aparentemente sem atrapalhar
ninguém.
"As mulheres viciadas são um problema social invisível,
porque ele não atinge os outros", diz Solange.
"Como afetam apenas a si mesmas, a existência delas
no mundo não parece fazer nenhuma diferença."
Com o estudo, os pesquisadores procuram dar visibilidade ao
tema e alertar que existem riscos sociais que podem afetar
a todos, relacionados principalmente à propagação
de doenças sexualmente transmissíveis, especialmente
a aids.
Algumas entrevistadas, por exemplo, dizem fazer até
nove programas diários. E boa parte não usa
preservativos. A maioria já sofreu algum tipo de violência
do cliente. "O drama é ainda maior porque, quando
estão sob efeito da droga, elas costumam se expor e
não se previnem", diz Solange. "Quando vemos
e compreendemos o problema, fica mais fácil resolvê-lo."
Criptonita
Se os problemas ligados ao vício diferem conforme
o sexo, os efeitos físicos do crack são iguais.
Entre os consumidores de crack, a pedra recebe o apelido de
criptonita, nome de uma rocha espacial que nos episódios
do Super-Homem é a única capaz de destruí-lo
e de sugar suas forças. A droga surgiu nos Estados
Unidos em meados dos anos 80 e chegou a São Paulo no
fim da década, popularizando-se nos anos 90. É
feita da pasta de cocaína, adicionada a bicarbonato
de sódio. Aquecida, é consumida em cachimbos.
Para ampliar mercado, segundo relatos de antigos dependentes,
os traficantes de época passaram a segurar a venda
da cocaína para empurrar o crack. A droga traz sensação
ao liberar a dopamina - excitante mais poderoso do organismo.
As substâncias contidas na fumaça do crack são
absorvidas rapidamente pelo cérebro por causa dos inúmeros
vasos sanguíneos espalhados pelo pulmão, em
uma área 200 vezes maior do que a da mucosa nasal,
usada para consumir cocaína.
Quando a pedra acaba, vem a chamada fissura. A falta de dopamina
no cérebro provoca forte depressão, chamada
de paranóia, que pode se transformar em um pesadelo
de alucinação e medo.
Para se livrar da fissura e da nóia, é preciso
fumar novamente. O alívio é temporário
e o ciclo se reinicia. A vida, então, passa a se resumir
a este eterno movimento circular.
BRUNO PAES MANSO
do jornal O Estado de S. Paulo
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