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Quase ninguém admite,
mas dedicar-se à filantropia produz satisfação
comparável ao sucesso profissional
Com uma fortuna de US$ 50 bilhões e apenas 50 anos
de idade, Bill Gates anunciou, na semana passada, a sua aposentadoria
da Microsoft para se dedicar a ações filantrópicas:
está mais obcecado por enfrentar a miséria da
África, ajudando a criar novos medicamentos, do que
em vender mais programas de computador. A decisão atraiu
as mais diversas especulações sobre essa aposentadoria
precoce. Dizem até, maldosamente, que ele vai deixar
o mercado para sair por cima e não ser derrotado por
competidores emergentes.
A partir de minha observação profissional nos
últimos 20 anos de voluntários dentro e fora
do Brasil, alguns deles poderosos empresários e executivos
dedicados a questões sociais, arrisco dar um palpite
sobre o software íntimo de Bill Gates: ele está
buscando apenas e simplesmente o prazer.
Quase ninguém admite publicamente -e nem em privado-,
mas dedicar-se à filantropia produz satisfação
tão grande ou maior do que o sucesso profissional.
Não é desprendimento ou bondade, mas egoísmo.
Um egoísmo saudável, mas egoísmo.
Bill Gates é um reflexo de um dos traços mais
interessantes dos Estados Unidos: a responsabilidade comunitária
de sua elite econômica. Todos os grandes magnatas americanos,
por mais inescrupulosos que tenham sido para amealhar suas
fortunas, também foram grandes doadores -e por isso,
mais do que pelos seus próprios negócios, ficaram
na história.
O nome deles está em todas partes: museus, universidades,
bibliotecas, parques, laboratórios, escolas públicas,
creches, asilos, salas de concerto. Atinge-se, dessa forma,
o sonho tão humano da imortalidade. Peguemos um exemplo
local. O império dos Diários Associados desmoronou,
mas seu fundador, o controvertido Assis Chateaubriand, sempre
será lembrado pelo Masp. É como serão
lembrados, entre outros, os Jafet e os Cutait por um hospital
como o Sírio-Libanês, os Feffer pelo Hospital
Albert Einstein, os Ermírio de Moraes pela Beneficência
Portuguesa, Ciccilo Matarazzo e os Nemirovsky pela doação
de seu acervo de quadros ao Museu de Arte Contemporânea
e à Estação Pinacoteca, Amador Aguiar
por uma rede de escolas públicas mantidas pelo banco
que criou.
Nunca mais me esqueci de um detalhe de meus passeios quando
morava em Nova York. Uma milionária americana (Lila
Wallace) deixou um fundo financeiro, cujos juros deveriam
ser usados apenas para trocar as exuberantes flores da entrada
do Metropolitan Museum of Art. Haveria gesto de maior egoísmo
e prazer do que planejar viver eternamente na forma de flores
em um dos mais visitados museus do mundo?
Está nisso o grande prazer: a chance de dialogar, através
do conhecimento, seja científico ou cultural, com a
imortalidade. É como se os indivíduos conseguissem
(até certo ponto conseguem) escapar das limitações
mortais e permanecessem lembrados, para sempre, pelos avanços
da humanidade. É como se, nesse diálogo com
o futuro, se transformassem em divinos pela capacidade de
gerar vida.
Uma das medidas do sucesso está na capacidade de o
indivíduo não precisar se preocupar apenas com
seus interesses e os de seus familiares. Já tem dinheiro
suficiente, tempo disponível e, acima de tudo, já
percebeu a fugacidade da glória terrena, para se dedicar
à sua comunidade. Seja essa comunidade do tamanho que
for: no caso de Bill, ela tem o tamanho da África,
o maior desafio planetário, onde a expectativa de vida
tem baixado.
São pessoas extremamente bem-sucedidas e privilegiadas
que perceberam que sua fonte de prazer não está
só no efêmero. Aprendi, porém, que esse
privilégio não depende apenas de poder e dinheiro.
Vi como pessoas humildes, sem posses, dedicam-se aos outros
e usufruem desse prazer de se sentirem criadoras de vida.
Não são pessoas melhores nem superioras nem
mais bondosas do que as outras que só cuidam de si
próprias. Apenas tiveram, sejam ricas ou pobres, a
chance de buscar prazeres mais profundos. Se Bill Gates tiver
o desempenho social que conseguiu na atividade comercial,
quando ele se despedir não do trabalho mas da vida,
a Microsoft (isso se até lá ainda existir) será
apenas um detalhe na sua biografia. Saborear esse prazer da
imortalidade é o que está por trás da
aposentadoria precoce de Bill Gates -e revela um software
do prazer.
P.S. - Acabamos de ver um interessante exemplo no Brasil.
Apesar das várias e polpudas propostas comerciais que
recebeu, José Mindlin decidiu que toda a sua biblioteca,
composta de livros raros, vai para a Universidade de São
Paulo. Ele, que é candidato à Academia Brasileira
de Letras, tornou-se imortal com o gesto. O contrário
seria a pobreza: seus livros espalhados pelo mundo e sua paixão
esquecida. O bom disso é que tais gestos acabam servindo
de padrão do que é ser alguém bem-sucedido,
gerando um enriquecimento em toda a comunidade. Não
é para quem quer, mas para quem pode. Pobre, de fato,
é aquele que só consegue viver seguindo as suas
necessidades.
Bill
Gates demonstra interesse em investir na cidade de São
Paulo
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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