A crônica
de mazelas seguidas pela impunidade é um poderoso estímulo
para o culto à malandragem
Cerca de 30% dos jovens fluminenses, entre 14 e 18 anos,
estão convencidos de que os honestos são tolos
e, mais cedo ou tarde, sairão prejudicadas por causa
de sua honestidade. É uma questão de sobrevivência,
portanto, aprender a malandragem.
É uma tendência detectada pelo Ibope e se espalha,
quase de forma homogênea, entre ricos e pobres. E, levando-se
em conta o que se já viu em demais pesquisas sobres
jovens, reflete um cinismo da juventude em todo o país.
A crônica de mazelas acompanhadas da impunidade é
um poderoso estímulo para o culto à malandragem,
afinal é promovida por quem deveria dar o exemplo:
os adultos e, mais do que isso, os adultos que estão
no comando.
Um dos efeitos graves, e pouco comentados, da sucessão
de denúncias, como o escândalo do dossiê
contra o PSDB, é o bombardeio a uma das poucas pontes
para que os jovens acreditem e se envolvam na vida pública:
as organizações não-governamentais.
Havia um tempo em que se dizer participante do chamado terceiro
setor, o misto de ação privada com vocação
pública, era motivo de orgulho. Mas, nos últimos
tempos, a cada denúncia, esse tipo de atuação
está entrando na galeria das atividades suspeitas da
política.
Nas investigações sobre o caso do dossiê
contra o PSDB, detectou-se que um dos principais participantes
da trama -Jorge Lorenzetti- comandava uma ONG, com polpudas
somas enviadas pelo governo. Verdade ou não, a primeira
suspeita é que a entidade teria servido a propósitos
escusos.
São vários os casos em que aparecem, nos mais
variados governos, entidades não-governamentais associadas
a projetos irregulares para evitar concorrências públicas
ou driblar os rigores da contratação de pessoal.
O PT conseguiu agravar ainda mais essa exposição.
Não significa que o terceiro setor não tivesse
problemas. Fala-se das "pilantropias", das instituições
de fachada para propósitos políticos, das vaidades
autorais, da solidariedade transformada apenas em marketing
empresarial, da falta de fiscalização e de mecanismos
de avaliação de resultado.
Quanto mais o terceiro setor se expandia, na década
de 1990, mais essas falhas eram comentadas, mas, diga-se,
sempre acompanhadas de uma reflexão sobre como saná-las.
As falhas eram compensadas por uma série de notáveis
conquistas nas áreas da educação, da
saúde, da preservação do ambiente e dos
direitos. Não existe um grande avanço social
no país sem o envolvimento, em algum nível,
do terceiro setor -isso vai das garantias aos deficientes
físicos, mulheres, idosos, negros até à
redução do trabalho infantil, o aumento da matrícula
escolar e a universalização da vacinação.
O apelo das ONGs entre os jovens está em sua agilidade
e eficiência típicas da iniciativa privada, mas
com compromisso público. É ser governo sem estar
no governo. É estar na iniciativa privada sem ser necessariamente
uma empresa. Não há intermediários: é
possível ver resultado na ação quando
caem os índices de mortalidade infantil, restaura-se
um monumento ou preserva-se uma área verde. Por isso,
muito do idealismo da política tradicional, tão
desgastada, rumou para as ONGs.
A relevância do terceiro setor reside, em boa parte,
em sua capacidade de trabalhar com o poder público,
transferindo-lhe seu conhecimento. Só assim as experiências,
localizadas, ganham vôo. Uma das mais importantes tarefas
das ONGs -talvez a mais- é ser um laboratório
de tecnologia social, cujas descobertas se tornem políticas
públicas. É assim, por exemplo, que a experimentação
de Zilda Arns, em pequenas comunidades, espalhou-se por todo
o país e ajudou a reduzir a mortalidade infantil. Ou
que Viviane Senna pôde aplicar, nacionalmente, métodos
para promover alunos repetentes, com baixo custo. O padre
Jayme Crowne fez da região mais violenta do planeta,
o Jardim Ângela, em São Paulo, um manual de segurança
pública. Projetos-piloto ajudaram a ensinar os governos
a reduzir a gravidez precoce e o consumo de drogas, tirar
jovens e crianças do crime, diminuir a incidência
de mortalidade infantil, melhorar o ensino.
Se os responsáveis por esses programas não
se sentirem confortáveis em dialogar com o governo,
temendo escândalos, o país perderá a chance
de usufruir essa parceria da comunidade com o setor público.
De quebra, dinamita-se essa ponte para a participação
dos jovens -ou seja, nossa futura elite dirigente.
P.S. - Continuo acreditando, e muito, que a atividade pública
só é eficaz se levar em conta, do planejamento
à ação, o envolvimento comunitário.
Um dos maiores avanços conceituais é a idéia
de que público não é apenas o oficial.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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