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força de vontade
17/08/2004
Mãe cria a AMAR e dá apoio à família de jovens internados na Febem

Inconformada com o atendimento prestado pela Febem-SP, quando seu filho foi internado, Conceição Paganele mobiliza um grupo de mães de adolescentes, que irá dar origem a AMAR – Associação de Mães de Adolescentes em Situação de Risco.

A entidade, que conta com a parceria do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dá apoio à família de jovens internados na instituição, por meio de atendimentos psicológico e jurídico. Também são denunciadas torturas.

Além dos atendimentos individuais e em grupo semanais na AMAR, Conceição recebe também muitas mães em sua casa, na cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. A assessoria jurídica é prestada por advogados do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), que atua em parceria. Há escritórios da AMAR no Rio de Janeiro e em Ribeirão Preto.Em São Paulo, a equipe técnica da AMAR é formada por uma socióloga e uma psicóloga, além de seis educadoras, familiares de adolescentes que estão ou passaram pela Febem.

Em sete anos de existência da entidade, essa baiana cheia de energia de 48 anos, mãe de seis filhos, um deles adotivo, já emprestou sua dedicação materna a mais de 6 mil adolescentes. Só nos últimos dois anos, foram cadastrados cerca de 500. “Eu sei que a minha luta não serviu para o Cássio na Febem, mas servirá para outros Cássios”, afirma.

Como você identificou a necessidade de criar a AMAR?
Conceição: A história começa quando eu descubro que o Cássio, meu caçula de cinco filhos na época, estava envolvido com drogas. Eu quero morrer porque a coisa é muito séria, dolorosa e difícil. Era como se estivesse em um buraco sem saída, tinha vergonha, medo. Ele tinha de 15 para 16 anos. Tentei buscar ajuda no Conselho Tutelar, na comunidade e no Fórum da Infância e Adolescência, pois ele já estava num momento em que podia matar ou morrer. Ele já pegava coisas de casa para vender e trocar por droga. Infelizmente, não havia nenhuma instituição para onde ele pudesse ir. O que talvez fosse possível seria enviá-lo para uma clínica, mas eu não tinha condições de arcar com mais uma despesa. E também dependia da vontade dele. E quem está tão empolgado no mundo das drogas não quer. E eu fui sentindo todo esse desamparo e descaso. Até que chegou um dia em que ele já estava roubando.

Quais foram os primeiros sinais de que ele estaria usando droga?
Conceição: Foi o distanciamento da família. Desde a morte do pai, quando o Cássio tinha dois anos, sempre fomos muito próximos. Depois que ele começou a usar droga, ele não me olhava mais no rosto. Percebi algo errado. E eu ficava confusa, pois ele estava na fase da adolescência, quando sempre ocorrem mudanças.

Que drogas o Cássio usava?
Conceição: Ele começou na maconha, mas foi um passo muito rápido para chegar na cocaína. E nós tentamos, eu e meu outro filho, conversar. E quando fiquei sozinha com meus cinco filhos pequenos, um dos meus grandes medos era com relação à droga. Os dois mais velhos, vigiei bem de perto, pois achava que precisava fazer o papel de pai e mãe. Como o Cássio já tinha os dois irmãos mais velhos, que trilhavam outro caminho, trabalhavam e estudavam, achei que ele já tinha exemplos masculinos em casa.

Como foi a experiência dele na Febem?
Conceição: Eu tinha medo que o prendessem ou matassem. Quando eu já estava num caminho desesperador, que não via mais saída, ele foi preso. Eu imaginava a Febem como um lugar apropriado que eu tanto busquei. Mas quando fui na primeira visita, já me deparei com aquele campo de concentração que era a unidade da Imigrantes. Já não sabia quem era meu filho e quem não era. Todos vestidos da mesma forma: no pescoço, usavam penduradas, em um barbante encardido, uma escovinha de dentes, de péssima qualidade, e uma caneca de plástico. Eram os únicos pertences, porque eles não tinham direito a nada ali, a não ser um colchão no chão para dormir. Sai dali preocupada porque vi muitas mães chorando também. Meu filho tinha ido para lá porque tinha errado, mas tinha que ser uma escola de aprendizagem. Eu imaginava um lugar com especialistas, médicos, psicólogos, assistentes sociais. E quando percebi que não era isso, passei a tentar visitá-lo durante os dias da semana também, não só aos domingos. E comecei a lutar pelos meus direitos maternos, até que o Cássio foi transferido para a unidade do Tatuapé, onde havia uma metodologia diferente de atendimento, pois o diretor era psicólogo e acreditava que só poderia ressocializar uma criança e um jovem com a família. E nessa unidade tínhamos autorização para entrar durante a semana. E comecei a me envolver mais ainda.

E o que a fez questionar ainda mais a Febem?
Conceição: Houve uma rebelião e o Cássio tentou fugir. Ele caiu do alambrado e quebrou os dois calcanhares. Esse momento foi crucial na minha vida. Ele foi internado, mas só fui saber dois dias depois por conta de uma evangélica. Estava jogado lá em uma maca no pronto-socorro, gritando de dor. As pernas dele estavam pretas que nem carvão, com bolhas de água roxa. Eu liguei na unidade dele e falei com a assistente social. Tive que insistir muito para me autorizarem a visitá-lo. Fui então me dando conta de como era ruim essa instituição. E depois ainda passei a ser discriminada pelo próprio hospital, pois queriam me proibir de visitá-lo por ele ser infrator e estar escoltado pela Febem. Só que para o hospital, ele é paciente, para mim é meu filho e para o Estado é infrator. São três instâncias. Fui até o Fórum e consegui autorização para visitar meu filho apenas nas horas de visita. Depois soube que eu tinha o direito de ficar o tempo todo com ele. A partir então, quando sabia que tinha mãe com filho doente, eu pegava o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e informava essas mães. Naquela época, eu devorei o ECA. E as mães foram ganhando força.

Como surgiu a AMAR?
Conceição: Nessa unidade onde o Cássio estava, apesar da falta de respeito que tiveram comigo na hora do acidente, não havia tortura. Por ter esse outro tipo de metodologia e permitir que as mães visitassem em outros dias que não o domingo, a Febem começou a perseguir esse diretor. Quando soube dessa articulação, juntei 32 mães e fomos até o fórum conversar com o juiz corregedor. E nesse momento surgiu a AMAR, no final de 98. Pela primeira vez, um grupo tão forte de mães foi questionar a Febem. Depois de tentarmos em vão com o juiz corregedor, que nos mandou para o presidente da Febem e também não solucionou, fomos chamadas para uma reunião com o diretor da unidade, José Resende. Cada mãe defendia sua situação pessoal, mas eu estava preocupada com algo mais abrangente, que era mudar a cultura da Febem. Depois desse primeiro contato, o diretor nos propôs fazer uma série de reuniões para nos capacitar sobre o ECA e cidadania. Das 32 mães, apenas eu e mais outras ficamos na AMAR, porque é algo muito pessoal. À medida que os filhos deixam a Febem, elas vão cuidar da sua vida, com os maridos. E eu como não tinha marido, podia me dedicar a isso.

Como foi o início da AMAR?
Conceição: Eu era muito atrevida. Naquele ano de 99, íamos nas portas das unidades em rebelião e entrávamos, e isso nos deu legitimidade. Enfrentávamos a tropa de choque da Polícia Militar. Eu garanti uma autonomia que ninguém me deu, mas eu garanti esse direito. E eu vou lutar por esse direito. A imprensa nos ajudou muito, pois dava visibilidade. A AMAR serve como um ombro amigo para as mães que não têm a quem recorrer. E aquilo que não fizeram por mim, eu comecei a fazer por elas. Então ia à delegacia junto, denunciava tortura.

Ainda existe o problema da droga na sua casa?
Conceição: Sim, nesse momento até que meu filho está bem, mas a pessoa que é dependente química tem várias recaídas. É uma incerteza, insegurança e infelicidade constante. É um mundo de tortura. A gente não consegue ser mais feliz.

De que forma as famílias podem ajudar o adolescente em situação de risco?
Conceição: A melhor maneira é se conscientizar e lutar pelas políticas de atendimento, principalmente, em relação ao álcool e às drogas, pois nós, a comunidade, somos maioria, para mudar essa situação e fiscalizar. Não adianta implantar tratamento de quinta categoria. A crise é muito séria. É uma rede de violência muito forte que exige a nossa união para combater isso e a miséria também. Não adianta blindar os carros e encher as casas de portões. Hoje, em várias famílias o tráfico de drogas é geração de renda, é emprego. Eu cheguei a conhecer famílias de gente muito decente, que os filhos traficavam para comerem. Olha o absurdo a que chegamos.

Como você vê o seu trabalho?
Conceição: Tenho uma missão, uma grande luta pela frente. E nós somos autores da nossa história. Minha luta é como uma grande árvore. Ela nasceu de uma pequena semente, mas sonho com o dia que ela dará sombra para o mundo. Eu sei que a minha luta não serviu para o Cássio na Febem, mas servirá para outros Cássios.


As informações são da Fundação Gol de Letra.

 
 
 

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