Inconformada com o atendimento prestado
pela Febem-SP, quando seu filho foi internado, Conceição
Paganele mobiliza um grupo de mães de adolescentes,
que irá dar origem a AMAR – Associação
de Mães de Adolescentes em Situação de
Risco.
A entidade, que conta com a parceria do Unicef (Fundo das
Nações Unidas para a Infância), dá
apoio à família de jovens internados na instituição,
por meio de atendimentos psicológico e jurídico.
Também são denunciadas torturas.
Além dos atendimentos individuais e em grupo semanais
na AMAR, Conceição recebe também muitas
mães em sua casa, na cidade Tiradentes, zona leste
de São Paulo. A assessoria jurídica é
prestada por advogados do Ilanud (Instituto Latino-Americano
das Nações Unidas para Prevenção
do Delito e Tratamento do Delinqüente), que atua em parceria.
Há escritórios da AMAR no Rio de Janeiro e em
Ribeirão Preto.Em São Paulo, a equipe técnica
da AMAR é formada por uma socióloga e uma psicóloga,
além de seis educadoras, familiares de adolescentes
que estão ou passaram pela Febem.
Em sete anos de existência da entidade, essa baiana
cheia de energia de 48 anos, mãe de seis filhos, um
deles adotivo, já emprestou sua dedicação
materna a mais de 6 mil adolescentes. Só nos últimos
dois anos, foram cadastrados cerca de 500. “Eu sei que
a minha luta não serviu para o Cássio na Febem,
mas servirá para outros Cássios”, afirma.
Como você identificou a necessidade de criar a AMAR?
Conceição: A história começa
quando eu descubro que o Cássio, meu caçula
de cinco filhos na época, estava envolvido com drogas.
Eu quero morrer porque a coisa é muito séria,
dolorosa e difícil. Era como se estivesse em um buraco
sem saída, tinha vergonha, medo. Ele tinha de 15 para
16 anos. Tentei buscar ajuda no Conselho Tutelar, na comunidade
e no Fórum da Infância e Adolescência,
pois ele já estava num momento em que podia matar ou
morrer. Ele já pegava coisas de casa para vender e
trocar por droga. Infelizmente, não havia nenhuma instituição
para onde ele pudesse ir. O que talvez fosse possível
seria enviá-lo para uma clínica, mas eu não
tinha condições de arcar com mais uma despesa.
E também dependia da vontade dele. E quem está
tão empolgado no mundo das drogas não quer.
E eu fui sentindo todo esse desamparo e descaso. Até
que chegou um dia em que ele já estava roubando.
Quais foram os primeiros sinais de que ele estaria usando
droga?
Conceição: Foi o distanciamento da família.
Desde a morte do pai, quando o Cássio tinha dois anos,
sempre fomos muito próximos. Depois que ele começou
a usar droga, ele não me olhava mais no rosto. Percebi
algo errado. E eu ficava confusa, pois ele estava na fase
da adolescência, quando sempre ocorrem mudanças.
Que drogas o Cássio usava?
Conceição: Ele começou
na maconha, mas foi um passo muito rápido para chegar
na cocaína. E nós tentamos, eu e meu outro filho,
conversar. E quando fiquei sozinha com meus cinco filhos pequenos,
um dos meus grandes medos era com relação à
droga. Os dois mais velhos, vigiei bem de perto, pois achava
que precisava fazer o papel de pai e mãe. Como o Cássio
já tinha os dois irmãos mais velhos, que trilhavam
outro caminho, trabalhavam e estudavam, achei que ele já
tinha exemplos masculinos em casa.
Como foi a experiência dele na Febem?
Conceição: Eu tinha medo que o
prendessem ou matassem. Quando eu já estava num caminho
desesperador, que não via mais saída, ele foi
preso. Eu imaginava a Febem como um lugar apropriado que eu
tanto busquei. Mas quando fui na primeira visita, já
me deparei com aquele campo de concentração
que era a unidade da Imigrantes. Já não sabia
quem era meu filho e quem não era. Todos vestidos da
mesma forma: no pescoço, usavam penduradas, em um barbante
encardido, uma escovinha de dentes, de péssima qualidade,
e uma caneca de plástico. Eram os únicos pertences,
porque eles não tinham direito a nada ali, a não
ser um colchão no chão para dormir. Sai dali
preocupada porque vi muitas mães chorando também.
Meu filho tinha ido para lá porque tinha errado, mas
tinha que ser uma escola de aprendizagem. Eu imaginava um
lugar com especialistas, médicos, psicólogos,
assistentes sociais. E quando percebi que não era isso,
passei a tentar visitá-lo durante os dias da semana
também, não só aos domingos. E comecei
a lutar pelos meus direitos maternos, até que o Cássio
foi transferido para a unidade do Tatuapé, onde havia
uma metodologia diferente de atendimento, pois o diretor era
psicólogo e acreditava que só poderia ressocializar
uma criança e um jovem com a família. E nessa
unidade tínhamos autorização para entrar
durante a semana. E comecei a me envolver mais ainda.
E o que a fez questionar ainda mais a Febem?
Conceição: Houve uma rebelião
e o Cássio tentou fugir. Ele caiu do alambrado e quebrou
os dois calcanhares. Esse momento foi crucial na minha vida.
Ele foi internado, mas só fui saber dois dias depois
por conta de uma evangélica. Estava jogado lá
em uma maca no pronto-socorro, gritando de dor. As pernas
dele estavam pretas que nem carvão, com bolhas de água
roxa. Eu liguei na unidade dele e falei com a assistente social.
Tive que insistir muito para me autorizarem a visitá-lo.
Fui então me dando conta de como era ruim essa instituição.
E depois ainda passei a ser discriminada pelo próprio
hospital, pois queriam me proibir de visitá-lo por
ele ser infrator e estar escoltado pela Febem. Só que
para o hospital, ele é paciente, para mim é
meu filho e para o Estado é infrator. São três
instâncias. Fui até o Fórum e consegui
autorização para visitar meu filho apenas nas
horas de visita. Depois soube que eu tinha o direito de ficar
o tempo todo com ele. A partir então, quando sabia
que tinha mãe com filho doente, eu pegava o ECA (Estatuto
da Criança e do Adolescente) e informava essas mães.
Naquela época, eu devorei o ECA. E as mães foram
ganhando força.
Como surgiu a AMAR?
Conceição: Nessa unidade onde o Cássio
estava, apesar da falta de respeito que tiveram comigo na
hora do acidente, não havia tortura. Por ter esse outro
tipo de metodologia e permitir que as mães visitassem
em outros dias que não o domingo, a Febem começou
a perseguir esse diretor. Quando soube dessa articulação,
juntei 32 mães e fomos até o fórum conversar
com o juiz corregedor. E nesse momento surgiu a AMAR, no final
de 98. Pela primeira vez, um grupo tão forte de mães
foi questionar a Febem. Depois de tentarmos em vão
com o juiz corregedor, que nos mandou para o presidente da
Febem e também não solucionou, fomos chamadas
para uma reunião com o diretor da unidade, José
Resende. Cada mãe defendia sua situação
pessoal, mas eu estava preocupada com algo mais abrangente,
que era mudar a cultura da Febem. Depois desse primeiro contato,
o diretor nos propôs fazer uma série de reuniões
para nos capacitar sobre o ECA e cidadania. Das 32 mães,
apenas eu e mais outras ficamos na AMAR, porque é algo
muito pessoal. À medida que os filhos deixam a Febem,
elas vão cuidar da sua vida, com os maridos. E eu como
não tinha marido, podia me dedicar a isso.
Como foi o início da AMAR?
Conceição: Eu era muito atrevida. Naquele
ano de 99, íamos nas portas das unidades em rebelião
e entrávamos, e isso nos deu legitimidade. Enfrentávamos
a tropa de choque da Polícia Militar. Eu garanti uma
autonomia que ninguém me deu, mas eu garanti esse direito.
E eu vou lutar por esse direito. A imprensa nos ajudou muito,
pois dava visibilidade. A AMAR serve como um ombro amigo para
as mães que não têm a quem recorrer. E
aquilo que não fizeram por mim, eu comecei a fazer
por elas. Então ia à delegacia junto, denunciava
tortura.
Ainda existe o problema da droga na sua casa?
Conceição: Sim, nesse momento até
que meu filho está bem, mas a pessoa que é dependente
química tem várias recaídas. É
uma incerteza, insegurança e infelicidade constante.
É um mundo de tortura. A gente não consegue
ser mais feliz.
De que forma as famílias podem ajudar o adolescente
em situação de risco?
Conceição: A melhor maneira é
se conscientizar e lutar pelas políticas de atendimento,
principalmente, em relação ao álcool
e às drogas, pois nós, a comunidade, somos maioria,
para mudar essa situação e fiscalizar. Não
adianta implantar tratamento de quinta categoria. A crise
é muito séria. É uma rede de violência
muito forte que exige a nossa união para combater isso
e a miséria também. Não adianta blindar
os carros e encher as casas de portões. Hoje, em várias
famílias o tráfico de drogas é geração
de renda, é emprego. Eu cheguei a conhecer famílias
de gente muito decente, que os filhos traficavam para comerem.
Olha o absurdo a que chegamos.
Como você vê o seu trabalho?
Conceição: Tenho uma missão, uma
grande luta pela frente. E nós somos autores da nossa
história. Minha luta é como uma grande árvore.
Ela nasceu de uma pequena semente, mas sonho com o dia que
ela dará sombra para o mundo. Eu sei que a minha luta
não serviu para o Cássio na Febem, mas servirá
para outros Cássios.
As informações são
da Fundação Gol de Letra.
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