Em seu primeiro ano de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
não zerou a fome de 36 milhões de alunos das
escolas públicas brasileiras. Pelo menos não
na hora da merenda. Uma análise de relatórios
feitos em 2003 por órgãos federais de fiscalização
revela, na véspera da volta às aulas na rede
pública de ensino, uma fotografia de corrupção
que esvazia os cofres da União e, em última
instância, o prato da garotada.
Um balanço preliminar da CGU (Controladoria Geral
da União) de auditorias feitas em 350 municípios
de pequeno e médio porte (até 300 mil habitantes)
mostra que houve impropriedades em 45% das licitações
ou dos pagamentos para a compra de merenda escolar. Já
fiscalização feita no primeiro semestre de 2003
pelo TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a um
número ainda pior: 54 dos 67 municípios visitados
(80%) tiveram problemas nos processos licitatórios
para a compra desses alimentos.
As irregularidades constatadas produziram os seguintes resultados:
1) em 40% das escolas do país faltou merenda em pelo
menos dez dias do ano passado ou por mais de dois dias consecutivos;
2) em 10% dos municípios analisados faltou comida em
algumas escolas por mais de 20 dias -sendo que quase a metade
dessas cidades está nos Estados brasileiros com menor
IDH (índice que mede o desenvolvimento de uma região
com base na expectativa de vida, no nível educacional
e na renda per capita).
Conselhos
São problemas que não surgiram na gestão
Lula, mas que também não motivaram programas
específicos nem a mesma atenção das atividades
do Fome Zero. O governo diz que vai intensificar as ações
de fiscalização para evitar novos casos de fraude
e melhorar a atuação dos conselhos por meio
de seminários de instrução (leia texto
nesta página).
O grosso do dinheiro da merenda vem dos cofres da União.
Será R$ 1 bilhão neste ano de repasse a Estados
e municípios, o que dá de R$ 0,13 a R$ 0,18
por dia por aluno, dependendo da faixa etária. É
pouco, mas é o possível no momento, justifica
o governo. Para comparar: um pãozinho de padaria custa
pelo menos R$ 0,15. A situação é ainda
pior num país onde a merenda escolar é, em alguns
casos, a principal ou a única refeição
do dia.
Prefeitos e governadores, que têm a responsabilidade
de completar a verba da União, raramente o fazem. E
os Conselhos de Alimentação Escolar (com representantes
da prefeitura, do Legislativo, dos professores, da sociedade
civil e dos pais de alunos), que deveriam fiscalizar os gastos,
são ineficientes -acompanham menos da metade das licitações
para a compra de alimentos.
Controle ineficiente
O atual controle "é incapaz de assegurar a correta
execução do programa", diz relatório
do TCU. Quanto mais pobre e dependente dos recursos federais
é o município, menos atuantes são os
conselhos que fiscalizam a aplicação do dinheiro.
É da sua ausência e da inação do
governo federal que prefeitos corruptos se aproveitam, com
a emissão de notas falsas e favorecimento a amigos.
As auditorias da CGU estão repletas de casos, muitos
ainda sendo questionados na Justiça. Em Rio Preto (MG),
o pagamento da licitação foi liberado pela prefeitura
antes mesmo da abertura das propostas. Em Buruti (AM) e em
Milagre do Maranhão (MA) houve favorecimento da empresa
vencedora. Em Estância (ES), os preços praticados
foram até 230% maiores que o valor de referência.
Em Eldorado dos Carajás, no sul do Pará, cidade
mais conhecida pelo massacre de 19 sem-terra em 1996, os técnicos
encontraram uma situação alarmante. Segundo
eles, as licitações foram falsificadas e os
itens comprados para a merenda não correspondem à
quantidade especificada nas notas fiscais. Há uma diferença
de R$ 28 mil. Suspeita-se da emissão de notas frias.
Suspeitas também pairam em capitais e cidades de grande
porte. Em Fortaleza, o prefeito Juraci Magalhães (PMDB)
é acusado de desvio de R$ 1,8 milhão. Em São
Carlos (SP), inquérito apura um rombo de R$ 4 milhões
em licitação fraudulenta que teria contratado
empresas fantasmas, diz a procuradora da República
Ana Carolina Nascimento.
As prefeituras suspeitas de fraudes e desvios negam as acusações
(leia texto nesta página).
Técnicos da controladoria estimam que cerca de 40%
das denúncias recebidas no órgão são
referentes a desvios no programa de merenda escolar. "Quando
há programas com grande descentralização,
como é o caso da merenda escolar, o controle do Estado
será sempre insuficiente se a população
não ajudar na fiscalização", diz
Leice Maria Garcia, coordenadora-geral de auditoria na área
de educação da CGU.
Pais improvisam
Frente ao escasso dinheiro que sobra para a merenda, pais
de alunos muitas vezes têm de improvisar. É o
que acontece em Bocaiúva do Sul (PR), a meia hora de
Curitiba, vilarejo rural mais conhecido pelo polêmico
prefeito Élcio Berti (PFL), que tentou expulsar da
cidade os moradores homossexuais. Em 2003, parte do total
de 1.200 alunos ficou por mais de 20 dias sem merenda. A situação
só melhorou quando familiares passaram a fazer doações.
"Sempre que posso, colaboro", diz José Xavier
da Silva, avô de Vanessa Silva, de 6 anos, que está
na pré-escola e, vez por outra, leva alface, couve,
tomate e repolho para as merendeiras da escola Cantinho do
Céu. Um em cada dez alunos traz mantimentos de casa,
diz a diretora Maria Cecília Mariano. "Treze centavos
por aluno não dá para nada. Se não fosse
a ajuda dos alunos, as crianças iriam passar fome",
diz.
Prefeituras administradas pelo PT também sofrem com
a falta de merenda. No outro extremo do país, em Assis
Brasil (AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia e
o Peru, os alunos não têm muito a comemorar na
volta às aulas. Lá, a falta de merenda é
uma constante. Só que a secretária de Educação,
Maria Eliane Gadelha, não teve a mesma sorte de sua
colega paranaense de Bocaiúva do Sul. "Estamos
procurando doadores, mas até agora, nada", lamenta
ela, responsável por 500 alunos da rede municipal.
Corrupção, ao menos, não é problema
no município. "O dinheiro que recebemos do governo
é tão pouco que nem tem como desviar",
ironiza.
FABIO SCHIVARTCHE
da Folha de S. Paulo
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