O antropólogo
Otávio Velho, professor do Museu Nacional da UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), acredita que o caso Waldomiro,
ao desmistificar o discurso ético que o próprio
PT ajudou a criar, deixou claros os limites do moralismo na
política.
"Do ponto de vista da lógica da ação
política, eles [o governo] tinham mesmo que evitar
essa CPI. Eu não faço nenhum julgamento moral
a respeito disso. Agora, como ele [Lula] se elegeu carregando
muito em cima do discurso moralista, está pagando o
preço por isso. E tem que pagar, não tem outro
jeito."
Para Velho, a política tem uma ética própria
na qual, sem cair no vale-tudo, o importante é o resultado.
Ele lembra a distinção que há, na língua
inglesa, entre "politics" (a política partidária
propriamente dita) e "policy" (as políticas
implementadas por meio de acordos políticos), e diz
acreditar que a maioria da população entende
a diferença melhor do que a academia.
O antropólogo não compartilha da opinião
de que a frustração das expectativas provocadas
pela eleição de Lula, expressa na recente queda
de popularidade do presidente, pode provocar desencanto com
a democracia.
"Talvez uma das coisas boas dessa experiência
que estamos vivendo seja o amadurecimento político.
A gente deixa de depositar toda esperança em cima do
jogo político para passar a ver a política apenas
como algo instrumental. Nesse sentido, a idéia de um
bom gerenciamento é fundamental. O ideal é ter
um bom gerenciador e não acreditar em grandes rupturas
ou alterações profundas e absolutas", disse
Velho, em entrevista à Folha.
Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Folha - Em novembro de 2002, logo após a eleição
de Lula, o sr. disse que o assédio popular a ele não
deveria ser confundido com "messianismo", porque
o presidente era visto pelos eleitores como um igual, e não
como um salvador. Como o sr. avalia a imagem de Lula agora?
Otávio Velho - Muitas vezes, a elite acredita
que suas preocupações são imediatamente
universalizadas, quando isso não acontece necessariamente.
É impressionante que a perda de popularidade de Lula
seja muito mais gradativa e menos abrupta do que a gente poderia
imaginar pelas manchetes dos jornais e pelo debate político.
Sem dúvida nenhuma, estamos diante de uma situação
complicada na política. Fernando Henrique [Cardoso,
ex-presidente] não deixa de ter razão quando
fala da inexperiência do PT, mas isso é óbvio.
A gente tem que passar por isso, a não ser que queiramos
acabar com a democracia e permitir que haja monopólio
de um grupo político que se acha iluminado e insubstituível.
Folha - Segundo Fernando Henrique, o que há
é inoperância no governo e falta de um projeto
de longo prazo...
Velho - A sensação de paralisia, fora
os aspectos operacionais que possam estar ocorrendo, se deve
a uma expectativa exagerada para os dias de hoje sobre o que
se pode fazer quando se está no governo. A gente sabe
que a margem de manobra dos Estados nacionais é muito
pequena, justamente porque eles estão subordinados
a uma dinâmica e a uma lógica global que os impede
de agir independentemente. É por isso que dizem que
o governo Lula repete o de Fernando Henrique. Talvez uma das
coisas boas dessa experiência que estamos vivendo seja
o amadurecimento político de uma parte considerável
da população brasileira.
Folha - Como assim?
Velho - Amadurecimento político no sentido de
que a gente deixa de depositar toda esperança em cima
do jogo político para passar a apostar mais em outras
coisas da vida, vendo a política apenas como algo instrumental.
Nesse sentido, a idéia de um bom gerenciamento é
fundamental. O ideal é ter um bom gerenciador e não
acreditar em grandes rupturas ou alterações
profundas e absolutas.
Folha - Mas há quem afirme que essa situação
pode resultar em dois riscos: a perda de interesse pela política
eleitoral, pelo voto, ou a eleição de um candidato
com discurso salvacionista. Com o sr. avalia isso?
Velho - Nós temos que navegar para evitar dois
grandes obstáculos na política: a ingenuidade
e o cinismo. O primeiro permite a eleição de
um salvacionista. O cinismo é fruto da idéia
de que é "tudo a mesma coisa". Não
é isso. Temos que olhar com uma lente de aumento para
perceber na micropolítica as diferenças entre
as propostas.
Folha - A Europa passou por essa situação
de desilusão com promessas de mudanças profundas,
depois dos governos socialistas de François Mitterrand
na França [1981 a 1993] e de Felipe González
na Espanha [1982 a 1996]. Isso pode acontecer no Brasil em
relação ao governo Lula?
Velho - Pode gerar uma desilusão para aqueles
que tinham uma esperança desmedida, algo que não
faz mais parte da nossa época. Por outro lado, não
podemos cair no pólo oposto, de achar que é
tudo a mesma coisa. Está bem claro que há uma
diferença entre os governos Clinton e Bush, ou, na
Espanha, entre Aznar e o PSOE (Partido Socialista Operário
Espanhol). Há diferenças também entre
o governo Lula e o de Fernando Henrique.
Folha - Por exemplo?
Velho - A política externa. Para mim, o ponto
alto do governo Lula. Houve realmente uma ousadia, uma capacidade,
que faz diferença. Agora, voltando à questão
da desilusão, há uma certa dificuldade hoje
de se saber qual é de fato a natureza da atividade
política, uma tendência de avaliar a política
com parâmetros que não são dela.
Folha - O sr. pode explicar melhor?
Velho - Nesses momentos de escândalo e de corrupção,
por exemplo. A idéia de que saiu alguma coisa errada
permite que surja uma espécie de moralismo pelo qual
tudo é julgado a partir da moral e da ética.
Não é assim que as coisas acontecem. Você
não julga um bom artista pelo seu aspecto moral, mas
por ele ser bom naquilo que faz. Um bom político não
é necessariamente o mais moral ou o mais ético.
Folha - Mas essa análise não leva à
velha máxima do "rouba, mas faz"?
Velho - Isso é imagem caricata. A minha afirmação
é de que o predicado principal não é
ser moral ou ético, mas ser um bom político.
Isso não significa que não exista uma moral
e uma ética da política. Nesse caso, a moral
e a ética devem ser instrumentos para que a política
se realize bem. Em inglês existem dois termos que tratam
disso: "politics" e "policy". Eu diria
que a boa "politics" é a capacidade de realizar
a "policy", ou seja, a capacidade de agregar recursos
humanos e não-humanos para alcançar objetivos.
Acredito que o moralismo da sociedade moderna está
tirando o espaço da política e isso é
muito grave. Acho que a política tem suas regras próprias
e que essas regras devem ter um controle externo, feito, por
exemplo, pela mídia. O problema é que a própria
mídia tem a sua dinâmica. Ela tem que vender
jornal, fazer notícia e há essa história
de ficar o tempo inteiro criando slogans. Numa hora é
o salvacionismo, outra hora é a mexicanização
[suposta tentativa do PT de perpetuar-se no poder por meio
do controle da máquina pública] do país.
Ora, a mexicanização ruiu rapidinho. Tudo é
muito efêmero.
Folha - Ao falar do moralismo que cerceia a política,
o sr. está se referindo à crítica às
coalizões partidárias, à disputa por
cargos?
Velho - Sim. É o mesmo raciocínio do
sujeito que prometeu alguma coisa na eleição
e não cumpriu quando foi eleito. A idéia de
uma absoluta transparência nesse campo não existe
e às vezes resulta em uma situação patológica
que permite a instrumentalização de demandas
morais e éticas com intenções oportunistas
e hipócritas. O PT fez isso antes da eleição,
continuou a fazer depois que ganhou e, agora, é vítima
desse jogo.
Cito o exemplo da demissão do Luiz Eduardo Soares [ex-secretário
nacional de Segurança Pública, demitido por
contratar a mulher e a ex-mulher para estudos sobre a violência],
uma pessoa próxima a mim. Foi uma vergonha, porque
se utilizaram motivos morais para realizar um ato imoral,
por meio da divulgação de documentos apócrifos
acusando o sujeito disso e daquilo. Ou seja, a moral, que
parece uma coisa boa, está seguidamente na política
a serviço do mal.
Folha - E no caso Waldomiro Diniz?
Velho - Alguma coisa de ruim aconteceu aí, mas
há uma grande hipocrisia no sentido de que a gente
sabe que todos [os partidos e candidatos] montam caixa dois
em busca de recursos. O negócio é fazer isso
e não ser pego. Agora, se você não faz
direito e é apanhado, então, vira escândalo,
que tem a função de focalizar um caso para abafar
os outros. Nesse caso, seria melhor entender essas necessidades
de recursos [de campanha] para se criar uma legislação
adequada.
Folha - Por essa lógica, o sr. acha que o PT
agiu certo ao bloquear a criação da CPI do caso
Waldomiro no Congresso?
Velho - Do ponto de vista da lógica da ação
política, eles tinham mesmo que evitar essa CPI. Eu
não faço nenhum julgamento moral a respeito
disso. Agora, como ele [Lula] se elegeu carregando muito em
cima do discurso moralista, está pagando o preço
por isso. E tem que pagar, não tem outro jeito. O que
se espera é que, a partir de um amadurecimento político,
não ocorra mais esse tipo de expectativa, de ilusões.
Folha - Pesquisas do Datafolha mostram que a expectativa
do cumprimento rápido de promessas de campanha de Lula
é menor nas faixas de menor renda e escolaridade. Por
que isso ocorre, na sua opinião?
Velho - Em geral, o povão é mais realista
em relação à política, vista como
uma espécie de mal necessário. O povão
não tem as ilusões dos bem-pensantes, que somos
nós. A partir daí, eles avaliam a política
do ponto-de-vista mais pragmático, que eventualmente
pode levar ao "rouba, mas faz", mas não necessariamente.
A política pode ser, para eles, algo mais grandioso.
Folha -O sr. não acha que esse realismo não
é desmobilizante, uma ameaça à democracia?
Velho - Pelo contrário, acho que ameaça
à democracia são justamente essas ilusões
da elite e, portanto, a outra face que são as desilusões.
Folha - Como professor de uma universidade pública,
qual é a sua avaliação sobre a reforma
da Previdência?
Velho - Evidentemente que a gente sabia que a situação
da Previdência era insustentável e que alguma
coisa tinha que ser feita. Se a gente quer redistribuição
de renda, em alguma medida a nossa faixa tinha que ceder.
Na verdade, a gente está sempre se queixando da vida.
Agora, se o governo será capaz de gerenciar essas mudanças
e se de fato haverá benefícios concretos para
as camadas populares, a gente não sabe.
CLAUDIA ANTUNES
MURILO FIUZA DE MELO
da Folha de S. Paulo, sucursal do Rio
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