Há quatro anos, Débora
foi levada a um abrigo da zona norte de São Paulo que
recebe crianças abandonadas ou retiradas da guarda
dos pais. Seria uma estadia provisória. Duraria até
que a Justiça definisse se ela - na época com
1 ano - poderia voltar para os braços da mãe
que a deixara ou se seria disponibilizada para adoção.
Mas o que era provisório está virando permanente.
Débora tem hoje 5 anos e, apesar de já ter encantado
casais interessados em dar-lhe uma casa e um sobrenome, nunca
saiu do abrigo.
"O processo ficou encostado no
fórum. Se tivesse andado, não tenho dúvida
de que ela já teria uma família", diz o
presidente da Casa Lar Frei Leopoldo, no Tremembé,
Sérgio Ribeiro de Souza. "À medida que
ela vai ficando mais velha, a adoção se torna
mais difícil."
Para acelerar casos como o de Débora
(nome fictício), um projeto de lei em tramitação
no Congresso quer impor a juízes e promotores prazos
para decidir processos de adoção. A idéia
está provocando polêmica entre magistrados e
entre membros do Ministério Público.
O projeto, do deputado João
Matos (PMDB-SC), coordenador da Frente Parlamentar da Adoção
(e pai de um garoto adotado que morreu aos 15 anos vítima
de tumor no cérebro), prevê a criação
de uma lei nacional. "Nossa grande preocupação
é com as crianças e o direito que elas têm
à convivência familiar."
Além de estabelecer prazos,
o projeto unifica regras sobre adoção nacional
e internacional, amplia incentivos para pais que adotam crianças
com problemas de saúde e cria cadastro nacional com
dados de crianças e de adotantes, entre outros aspectos.
Hoje, as regras sobre o tema estão espalhadas pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990,
pelo Código Civil e por normas estaduais distintas.
Entre os pontos mais polêmicos do projeto está
o que trata dos prazos.
"Hoje há milhares de crianças
que chegam aos abrigos e esperam anos até que a Justiça
resolva se elas podem voltar para suas famílias ou
ser adotadas", diz Gabriela Schreiner, diretora-executiva
do Centro de Capacitação e Incentivo à
Formação (Cecif), ONG dedicada ao treinamento
de profissionais que lidam com convivência familiar.
"Às vezes, ela faz 10, 12 anos e descobre que
não tem família. E a chance de adoção
nessa faixa etária é pequena."
É o caso de Miriam (nome fictício),
de 11 anos, que há 3 vive no mesmo abrigo de Débora.
Ela e seus três irmãos menores foram afastados
da mãe por maus-tratos. "Até agora o juiz
não tirou o poder da mãe e elas não têm
como ser adotadas", diz a coordenadora da entidade, Priscila
Machini Vilas Boas.
O texto diz que todos os abrigos (nova
definição para os antigos orfanatos) do País
terão de montar equipes técnicas para avaliar
em 60 dias se a família natural de uma criança
recém-chegada - vítima de maus-tratos ou negligência
em casa, por exemplo - tem ou não condições
de receber o filho de volta. Se a resposta for sim, o prazo
para a preparação da família deve levar
120 dias - renováveis por mais 120 dias. Mas se a resposta
for não, o Ministério Público Estadual
(MPE) terá um mês para dar entrada num processo
de destituição de poder familiar e os tribunais,
seis meses para julgar a questão.
"A burocracia atual é
tanta que existem filas imensas de adotantes e abrigos lotados
com crianças querendo ser adotadas. O projeto de lei
cria atalhos para que essas duas linhas se encontrem. E também
simplifica e regula a tramitação dos processos
nos tribunais de Justiça, que é onde eles param",
diz o juiz da 2.ª Vara de Infância e Juventude
do Recife, Luiz Carlos de Barro Figueiredo, especializado
em adoção. Figueiredo, assim como Gabriela,
participou da comissão que ajudou a elaborar o texto.
Na Vara Central de São Paulo, processos mais simples
e sem complicações levam até oito meses.
Polêmica - O projeto do deputado
ganhou caráter de urgência urgentíssima
na Câmara e, por determinação do presidente
da Casa, João Paulo Cunha (PT-SP), será avaliado
por uma comissão, cujos membros devem ser nomeados
nesta semana. Antes de isso ocorrer, o texto já causa
divergências.
"A colocação de
prazos tão reduzidos é uma tentativa de impor
uma regra na qual a realidade não se encaixa",
diz o secretário da Comissão Estadual de Adoção,
Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, juiz-auxiliar da corregedoria,
responsável pela Infância e Juventude. "Os
juízes e os promotores provavelmente não terão
condições de cumprir."
Segundo ele, os processos demoram
muitas vezes pela dificuldade de contactar os pais biológicos
para ouvi-los nos processos de destituição familiar
ou então quando estes resistem à perda do poder
e recorrem. É o caso da pequena Débora, cuja
mãe, embora nunca mais a tenha visitado, reclama seu
poder sobre a filha.
Para o procurador de Justiça
de São Paulo e um dos co-autores do ECA Paulo Afonso
Garrido de Paula, o projeto pode incorrer em outro erro: o
de facilitar a destituição do poder familiar
sobre a criança. "Seria possível estabelecer
melhorias no ECA para tornar ágeis os processos e as
resoluções, mas sem atingir o direito constitucional
de a família natural ter seu filho consigo. E esse
direito o projeto atinge." O importante, diz ele, é
promover a família e dar condições que
ela acolha a criança.O autor do projeto se defende
e diz que nenhuma família será afetada no seu
direito. "Tive o cuidado de me valer da análise
e da participação de autoridades conhecedoras
do Código Civil e do ECA."
Marcos de Moura e Souza
O Estado de S. Paulo
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