As passeatas dançantes e
os grupos de discussão promovidos por milhares de excluídos
asiáticos atropelaram as conferências dos intelectuais
de esquerda. Esse tipo de palestra foi a marca dos três
Fóruns Sociais Mundiais, ocorridos em Porto Alegre.
A "intelligentsia" está longe dos holofotes.
Ontem, o francês Bernard Cassen, diretor-geral do "Le
Monde Diplomatique" e presidente de honra do grupo antiglobalização
Attac (Associação pela Taxação
das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos),
levantou-se da mesa durante uma coletiva em que os jornalistas
da Ásia só faziam perguntas sobre jornais comunitários
a palestrantes de seu continente. "O fórum de
Porto Alegre era mais acadêmico", diz Hermílio
Santos, professor de sociologia e funcionário do governo
do Rio Grande do Sul.
Em Mumbai entraram em cena grupos para os quais a miséria
não é um objeto de estudo, mas sim uma condição
de vida -como o movimento das prostitutas de Calcutá
(a sigla é DMSC), um dos maiores do mundo, e o dos
trabalhadores tribais indianos.
Enquanto os seminários oficiais do fórum estão
quase às moscas, as reuniões da Campanha Nacional
de Direitos Humanos dos chamados "intocáveis"
(a casta mais baixa da Índia) são tão
concorridas que há pessoas sentadas no chão.
Essas discussões ocorrem em hindi e não são
traduzidas.
A coordenação do fórum estima a presença
de cerca de 30 mil homens e mulheres intocáveis (de
78 mil participantes) no Nesco Ground, onde se realiza o evento.
Sérgio Haddad, presidente da Abong (Associação
Brasileira de Organizações Não-Governamentais),
diz que a falta de tradução simultânea
faz com que os seminários e conferências oficiais,
todos em inglês, fiquem esvaziados. "Há
militantes brasileiros e de outros países que não
conseguem participar das discussões", ressalta
Regina Novaes, presidente do Ibase (Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas).
Falta de interesse
Há outros motivos que limitam o interesse dos excluídos
pelos debates oficiais do fórum: muitas questões
ali tratadas não lhes dizem respeito, e às vezes
o enfoque dado aos temas não condiz com a realidade
dos indianos pobres. Um exemplo são as privatizações,
criticadas pelos intelectuais de esquerda. Na Índia,
o problema não existe, pois não há estatais
à venda. "O léxico político dessas
pessoas é outro", compara Novaes.
Os movimentos de proteção à infância
lutam contra o trabalho infantil, uma causa mundial, e, quase
na mesma intensidade, contra o casamento de crianças,
um problema localizado. Nas aldeias da Índia, onde
vive 60% da população, as meninas se casam aos
11 anos. "As famílias não têm como
proteger suas filhas contra raptos ou contra a violência
sexual. Procuram um marido para elas e passam adiante a responsabilidade",
explica John Menachery, diretor da ONG holandesa Child Helplines
International. De janeiro a outubro de 2003, a ONG atendeu
a 217.442 crianças.
O economista Nelson Delgado, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, afirma que os excluídos asiáticos
discutem temas mundiais do ponto de vista prático e
sempre abordando a participação popular (uma
tradição entre os indianos), a pobreza (o dia-a-dia
de quase todos) e as chamadas questões de gênero,
já que as mulheres são o grupo mais forte da
sociedade civil organizada.
GABRIELA ATHIAS
Enviada especial da Folha de S. Paulo a Munbai
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