CURITIBA
- É a escola tradicional que aprova alunos sem ensiná-los,
diz Denise Chella Machado, superintendente da Secretaria de
Educação de Curitiba. Acostumada a ouvir, nos
últimos cinco anos, que o sistema de ciclos de aprendizagem
implantado em 154 escolas do município é um
mero sistema de “aprovação automática”,
ela faz uma comparação simples para mostrar
o contrário: “58% dos alunos brasileiros na 4.ª
série têm desempenho crítico em língua
portuguesa, mas apenas 20% das escolas brasileiras são
cicladas”.
Escolas cicladas, segundo Denise, são aquelas em que
os alunos são avaliados constantemente ao longo de
dois anos para, então, ser promovidos para o ciclo
seguinte ou retidos em classes de aceleração,
com métodos de aprendizagem e conteúdo adequados
a suas dificuldades. Na escola pública tradicional,
com seus problemas crônicos, os repetentes passam anos
a fio dividindo salas com crianças mais novas e os
professores vão dando um jeito de passá-los,
antes que a situação se agrave.
O secretário de Educação, Paulo Schmidt,
estabeleceu a autonomia administrativa e pedagógica
das 160 escolas municipais e somente seis decidiram permanecer
seriadas. “Mas são escolas que têm o mesmo
compromisso com o ensino adequado à necessidade do
aluno”, assegura.
Ao fim de duas gestões (1996-2004), os cerca de 112
mil alunos da rede pública apresentam alguns dos melhores
resultados do País: a evasão (porcentual de
alunos que deixam a escola durante o ano letivo) caiu de 2,8%
em 97 para 0,7% em 2002 e Curitiba é a capital com
maior índice de crianças freqüentando a
escola, segundo o IBGE. Além disso, de 98 a 2002 o
índice de atraso escolar (distorção idade/série)
na faixa dos 7 a 14 anos caiu de 20% para 5%, a menor taxa
entre as capitais.
Os principais trechos da entrevista:
Estado – A implantação dos ciclos
foi uma boa forma de aumentar as vagas sem construir mais
escolas, não? Havia uma pressão pelo aumento
de matrículas e os repetentes estavam ocupando vagas...
Denise Chella Machado – Isso começou
com Paulo Renato (Souza, ministro da Educação
no governo Fernando Henrique Cardoso). Não conseguíamos
universalizar a pré-escola e a primeira série
dado o alto índice de retenção de alunos.
Mas nossa maior preocupação era com a distorção
de idade: crianças que ficavam quatro, cinco anos repetindo.
Tínhamos crianças com 13, 14 anos na primeira
série porque eram retidas ou ficavam entrando e abandonando
a escola, um absurdo. Então fizemos um programa de
aceleração para fazer estas crianças
evoluírem até a série correspondente
à sua idade, o que levou quatro anos (94 a 98).
Estado – Por que as reprovações
começaram a preocupar?
Denise – Até 1995 tínhamos índices
de retenção na faixa de 25% a 30% dos alunos
de primeira e segunda séries. Isso era considerado
normal. Então começamos a questionar a qualidade
do trabalho dos professores: como seria possível dizer
que o trabalho estava bom se 25% dos alunos não passavam?
Começamos a questionar o modelo de avaliação,
a pensar sobre a competência profissional do professor,
a forma como ele estava trabalhando com essas crianças,
e isso provocou grande impacto.
Estado – Mas foi preciso mobilizar os professores,
quebrar alguns costumes e tradições, não?
Denise – Trabalhamos todo o tempo para romper
com uma proposta pedagógica que está posta há
mais de um século, ainda sustentada e reproduzida pelas
universidades. Adotamos o sistema de ciclos, desde 1998, com
avaliação contínua dos alunos, e o professor
ainda sai da universidade e pergunta “mas como é
que funciona o ciclo?”... Na Europa o sistema de ciclos
já existe há mais de 60 anos, não é
uma novidade. Até no Brasil já existiam iniciativas
anteriores à de Curitiba... Não dá para
o professor sair da universidade e ir saber o que é
ciclo na sala de aula, mas é isso o que acontece.
Estado – Quanto se deve aos ciclos pela melhoria
dos indicadores da Educação em Curitiba?
Denise – Os ciclos não resolvem o fracasso
escolar por si, mas a organização em ciclos
e o sistema de avaliação que se pode estabelecer
nela são um ponto primordial. A ruptura necessária
para começar a melhorar a qualidade do aprendizado
está na mudança da avaliação dos
alunos. Já em 1992 começamos a repensar no sistema
de notas, que eram bimestrais e completamente distorcidas
em relação ao que os alunos aprendiam ou tinham
dificuldade de aprender. Nós instituímos na
avaliação constante, continuada, processual,
que permite ao professor saber em quê ele precisa ajudar
mais o aluno, a partir de que ponto ele vai conduzir o aluno
no início do ano letivo para que ele aprenda o que
precisa aprender. Há boas experiências assim
também nas redes de ensino de Porto Alegre, Belo Horizonte,
Niterói...
Estado – Por que dizem que este sistema é
de aprovação automática?
Denise – O problema da promoção automática
acontece quando o professor pensa que “não adianta
fazer nada porque o aluno vai passar mesmo...” Houve
realmente uma displicência de muitos docentes neste
processo, em vários lugares no Brasil, fruto da falta
de clareza, de motivação e até como sabotagem.
Estado – Ainda se discute muito sobre séries
versus ciclos em Curitiba?
Denise – Os vereadores vivem nos chamando na
Câmara para explicar como funciona o nosso sistema.
Há um discurso predominante afirmando que as crianças
chegam à quinta ou sexta série sem saber ler
e escrever por causa do sistema de ciclos de aprendizagem.
O Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica) mostrou que 58% dos alunos brasileiros na quarta
série têm desempenho crítico em língua
portuguesa, mas apenas 20% das escolas brasileiras são
cicladas. Se fizermos uma leitura radical destes números,
considerando que todos os alunos de escolas cicladas se saíssem
pessimamente no Saeb, teremos de concluir que as escolas seriadas
ainda produzem 80% dos alunos com desempenho crítico
ou muito crítico. Estamos descobrindo que são
as escolas organizadas em série que estão aprovando
automaticamente os alunos, sem que eles aprendam.
Estado – As experiências de Curitiba podem
ser replicadas facilmente em outras regiões do Brasil?
Denise – Políticas públicas, ou
você tem ou não tem. O Estado de São Paulo,
pelo tamanho que tem, não teria condições
de fazer o que fizemos. Demos autonomia para as 160 escolas
elaborarem seus projetos, mas isso é impossível
em São Paulo. Imagine quantos mil projetos chegariam
à secretaria estadual para serem analisados. Tem de
ser uma diretriz, tem de ser de cima para baixo, não
tem de ser discutido com a categoria.
As informações são
da Agência Estado.
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