As comunidades
indígenas no Brasil assistiram, com o passar dos séculos,
ao processo que resultou no esfacelamento da cultura e na
perda do direito à terra, componente fundamental para
a afirmação da raça. Os reflexos do drama
vivido pelos índios são sentidos, com as mais
severas conseqüências, entre as crianças
que, desde pequenas, aprendem a conviver com o acesso precário
a necessidades essenciais para a formação de
adultos saudáveis e conscientes de seus direitos.
Elaborado no início do ano pela equipe do Fundo das
Nações Unidas para a Infância e a Adolescência
(Unicef), em Madri, na Espanha, o estudo Garantindo o Direito
das Crianças Indígenas é inédito
ao detalhar a situação desta fatia da população
no mundo e aponta iniciativas que visam à redução
do abismo que as separa das crianças brancas.
Segundo o documento, ''crianças e adolescentes indígenas
estão entre os mais discriminados em todo o mundo,
sendo privados de seus direitos à vida, à saúde,
à educação e à proteção''.
No Brasil, há 287 mil crianças e adolescentes
indígenas, que sofrem, segundo o estudo, os mais diversos
preconceitos e discriminações. Para o coordenador
de projetos do Unicef para a Região Centro-Sul do Brasil,
Salvador Soler, o maior desafio para garantir direitos às
crianças indígenas passa pela questão
da terra.
"A terra é componente fundamental para assegurar
os direitos indígenas, devido à ligação
que se estabelece com a cultura e com seu conceito de vida.
Crianças que nascem em comunidades cujas terras não
são demarcadas, ficam abandonadas no seu direito à
educação e à saúde", defende
Soler.
Um dos dados mais dramáticos sobre a infância
indígena no Brasil refere-se ao precário acesso
escolar. Meninos e meninas indígenas têm sete
vezes mais chances de chegar a adolescência sem ser
alfabetizados dos que as crianças brancas. O mesmo
entrave se repete no acesso à água potável.
Crianças brancas têm cinco vezes mais chances
de beber água limpa que as indígenas.
A Convenção dos Direitos Indígenas,
elaborada em 1989, foi o primeiro instrumento do direito internacional
a se dedicar exclusivamente à infância desses
povos. O Artigo 7º da ata prevê o registro civil
da criança imediatamente após o nascimento.
Reconhece, ainda, o direito a um nome e a adquirir uma nacionalidade.
Um dos grandes desafios no Brasil é dar tal garantia
aos indígenas. Na Sub-Região Amazônica,
apenas 45% das crianças índias têm registro
civil (a média nacional é de 70%). Este número
baixa para 21% quando se refere aos meninos equatorianos que
vivem na Região Amazônica. O relatório
aponta que, sem o registro, a violação dos direitos
é muito maior, porque se exclui dessas crianças
as possibilidades de usufruírem e receberem a proteção
proporcionada pelo Estado. Além disso, ao se tornarem
indivíduos adultos, não poderão votar
e nem mesmo se apresentar como candidatos.
Salvador Soler esteve no Mato Grosso do Sul, onde participou
de um estudo para identificar as causas do suicídio
entre os adolescentes da tribo guarani-kaiová. Ele
aponta que a desnutrição, a falta de identidade
e a baixa auto-estima, ligadas à questão da
terra, levam os jovens a sacrificarem a própria vida.
Muitos deles abandonam os estudos muito cedo para trabalhar
nas usinas de cana.
"O contato com o branco o desenraiza da cultura, provocando
a crise de identidade, que pode levar ao suicídio",
avalia. O estudo menciona o caso dos guaranis, revelando que,
de uma população de mais de 1,5 milhão
de indígenas dessa etnia, restaram apenas 30 mil. Segundo
o relatório, entre 1985 e 2000, cerca de 300 guaranis
praticaram suicídio, em sua maioria crianças
e adolescentes.
Na tentativa de reduzir os índices, foi criada na
Comunidade Indígena Carapó (Mato Grosso do Sul)
um projeto de educação para os guarani-caiová.
"Percebemos que, pela falta de dinheiro para comprar
roupas e calçados, as crianças preferiam trabalhar
a se dedicar aos estudos. Muitos menores até falsificavam
documentos para trabalhar na indústria da cana",
diz a coordenadora das escolas indígenas de ensino
fundamental, Arani Nantes.
O projeto, elaborado em julho de 2001 com as parcerias do
Estado e da Universidade Católica Dom Bosco, prevê
o pagamento de R$ 50 por mês e aulas em tempo integral.
Pela manhã, na sala de aula, além das disciplinas
curriculares, estudam também a língua guarani.
À tarde, praticam atividades de agricultura, artesanato,
além de esportes, lazer e aulas de computação.
Arani diz que pretende ampliar o programa, que contempla só
100 estudantes num universo de 840 matriculados.
Para assegurar a sobrevivência da infância indígena
em todo o mundo, o estudo do Unicef aponta quatro prioridades:
o acesso à saúde e à nutrição
de qualidade; o direito à alfabetização
na língua materna; a necessidade de acesso ao registro
civil; e a participação em decisões que
afetam suas vidas, como a luta pela terra como condição
fundamental para sobrevivência física, cultural
e social.
"O desafio do mundo contemporâneo, marcado pela
globalização, é não passar por
cima da diversidade de culturas e raças, e entender
que é a partir da infância que os indígenas
começam a brigar pelo que têm direito",
aponta Soler.
As informações são
do Jornal do Brasil.
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