Ativista
do movimento negro há 30 anos, Helio Santos é
também professor de finanças na Universidade
de São Paulo e doutor em Administração.
Acostumado a trabalhar com números, o militante acredita
que a diminuição das desigualdades raciais pode
promover o desenvolvimento integral do Brasil.
Em entrevista exclusiva para o setor3, o professor faz uma
análise dos movimentos negros atuais, sobre o Estatuto
da Igualdade Racial, sobre as perspectivas para a diminuição
das desigualdades e discriminação raciais e
sobre a importância da instituição do
dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, como feriado.
Autor do livro "A Busca de Um Caminho para o Brasil
- A Trilha do Círculo Vicioso", publicado pela
Editora Senac São Paulo em 2001, o professor fez pesquisas
durante 10 anos, para entender as contradições
raciais da sociedade brasileira. Na publicação,
escrita com uma linguagem bastante agradável, ele fala
do racismo no país, da exclusão social do negro,
sobre as formas de legitimação da escravidão
e como se deu sua abolição.
setor3 – Como o senhor avalia o movimento negro
atualmente?
Helio Santos - O movimento negro, como todo movimento
social, vive hoje um momento de pouco efervescência.
No entanto, acredito que o movimento social negro apresenta
uma movimentação acima dos demais movimentos
sociais.
setor3 – Por que isso acontece?
Helio - Esse refluxo dos movimentos tem a
ver com a coisa governamental... Mas existe um movimento de
marcha, que é a Zumbi, fundada em 1995, quando se celebrou
300 anos da morte de Zumbi. Agora, em 2005, queremos Zumbi+10,
por causa dos 310 anos. Haverá uma movimentação
nacional importante. Então, os movimentos negros têm
várias pessoas com expectativas diferentes, com conhecimentos
diferentes, atuando. Na minha opinião, o movimento
poderia aproveitar mais o momento para ter uma dinâmica
maior. Afinal de contas, tem um governo, que é sensível
[à causa]. Mas ser apenas sensível é
insuficiente, como vem se demonstrando. Então, o movimento
está eclipsado. Todos os movimentos sociais estão
assim. O movimento negro também, mas menos na minha
avaliação.
setor3 - Qual a principal conquista dos movimentos
negros até o momento?
Helio - Você faz uma pergunta correta. Tudo que foi
obtido até agora foi através do movimento. Você
não pode creditar os avanços que nós
conquistamos a nenhum partido político, a nenhum movimento
político. Não há no Brasil, um único
partido de defesa das nossas questões, da forma como
as defendemos. Você tem aliados de diversos setores...
Mas como eu avalio essas conquistas? Essas conquistas estão
pela metade.
setor3 - Por quê?
Helio - Porque tudo o que foi viabilizado
não partiu do governo. Nem do anterior nem deste. O
que se tem nas universidades públicas são ações
dos movimentos, dos ativistas. Em 2001, houve o encontro da
ONU, em Durban. Foi um momento importante para o mundo, não
só para o Brasil. E foi um momento em que o movimento
negro se articulou e construiu. O que foi conquistado está
aí. É resultado do ativismo e não de
pessoas isoladas ou de partidos isolados. A avaliação
que eu faço é a seguinte: a única coisa
que tem sido feita hoje no horizonte político brasileiro
são políticas de ações afirmativas.
Leia o jornal de hoje e dos últimos 30 dias passados...
Não estou falando do cenário internacional,
mas dentro do Brasil... O dilema era o mesmo do governo Fernando
Henrique, que já era do governo Itamar: desenvolvimento
com inflação. Ou seja, você tem uma perspectiva
econômica forte com horizonte político sem alternativas
ousadas. A única coisa nova do panorama político
são as cotas para negros, as políticas de ações
afirmativas. Então, eu acho que o movimento negro,
apesar de não ter aliados fortes como a mídia,
conseguiu muito.
setor3 - E o Estatuto da Igualdade Racial, o que
ele representa? E como o senhor avalia o fato de até
hoje ele não ter sido aprovado?
Helio - O Estatuto da Igualdade Racial é
um avanço. E o governo não quis mandar por medida
provisória... Por medida provisória, o governo
taxa inativo. Por medida provisória, o governo brinda
o presidente do Banco Central. Mas as políticas de
ação afirmativa, o governo considerou 'polêmicas'.
Mas taxar inativos é muito mais polêmico! Como
representa um avanço importante, eu não acredito
que o Estatuto da Igualdade Racial passe incólume pelo
Congresso. Ele vai ser cortado. E nem tenho mais certeza de
sua aprovação. O Congresso é muito complicado...
Há aliados e pessoas que são literalmente contra.
Então, é um projeto muito amplo, que cobre tramitação,
concurso público, envolve a universidade... O Estatuto
da Igualdade Racial representa a síntese daquilo que
o movimento negro sempre pregou, mas vai estar na berlinda
no Congresso. O Congresso não consegue votar matérias
muito menos polêmicas! Então, quando é
que isso será votado? Portanto, é um horizonte
nebuloso. Acho que o governo poderia marcar um tempo. Por
exemplo, amanhã é dia 20 de novembro. E, e por
medida provisória, deveria ter aprovado tudo isso.
Seria um avanço importante e aí sim, o governo
teria um grande crédito a seu favor: a mudança
do Brasil.
setor3 - Fazendo uma relação da Marcha
Zumbi+10 com o Estatuto, o movimento negro não vai
pressionar de uma forma mais efetiva para a sua aprovação?
Helio - Vai sim. O movimento vai avançar.
Eu acho que Zumbi +10 não é só dia 20
de novembro de 2004. Até dia 20 de novembro de 2005,
nesses doze meses, já teremos grandes movimentações,
grandes encontros. Portanto, eu estou otimista em relação
ao ativismo negro. Acho que a marcha Zumbi+10 é a grande
novidade.
setor3 – Como o senhor acredita
que a diminuição das desigualdades raciais possa
gerar um desenvolvimento econômico no Brasil?
Helio - A tese de que a exclusão do negro que impede
o desenvolvimento brasileiro é minha. No meu livro
[A Busca de Um Caminho para o Brasil - A Trilha do Círculo
Vicioso] tem um capítulo que explica isso. Você
pode esquadrinhar a inclusão do negro e mostrar como
ela propõe e provoca o desenvolvimento integral.
setor3 – O senhor pode explicar melhor?
Helio - Há uma coisa chamada "mercado interno".
Existem, no Brasil, 55 milhões de pobres que vivem
abaixo da linha da pobreza. De cada dez pobres destes, sete
são negros. O Brasil é uma das dez maiores economias
mundiais - hoje, é uma das doze maiores economias industriais
do mundo, mas há cinco anos nós éramos
umas das oito maiores economias. Apesar disso, naquele mesmo
ano, nós éramos a primeira economia em concentração
de renda. Qual é o eixo de gravidade que explica isso?
O eixo de gravidade que explica isso é exatamente a
exclusão do negro. A exclusão acabou provocando
a existência de dois Brasis: o Brasil moderno, rico,
inclusivo, em que o negro não participa; e o Brasil
pobre. Eu não aceito dizer que o Brasil não
é desenvolvido. Quando alguém fala do Brasil,
eu pergunto: "qual Brasil você está perguntando?".
Se for o Brasil de Alphaville [região que concentra
grandes empresas e onde está localizado um dos condomínios
fechados mais luxuosos da Grande São Paulo] é
o Brasil riquíssimo, o Brasil dos elos fortes, dos
shoppings centers, o Brasil cujo primeiro item da pauta da
exportação são jatos de porte médio,
o melhor do mundo... Ao mesmo tempo, temos um déficit
habitacional, com falta de milhões de moradias... Então,
o Brasil é um país que não concluiu o
dia 14 de maio de 1888 - o dia seguinte da abolição
da escravidão. Essa é a minha tese. A inclusão
do negro é que vai permitir o desenvolvimento com sustentação
social. Essa tese - que os economistas de direita e de esquerda
não consideram - é que o desenvolvimento inclusivo
do negro é que provoca desenvolvimento integral.
setor3 - Como tentar diminuir essas desigualdades
raciais? O senhor acha que isso passa pela educação
ou por algum outro fator?
Helio - Por duas coisas: educação e trabalho.
Além de você capacitar as pessoas, é fundamental
a diversidade no mercado de trabalho. Aliás, antes
de discutir emprego, vamos ter que discutir empregabilidade.
Emprego é para quem tinha emprego e perdeu. Empregabilidade
é para quem tem que ser capacitado, para os analfabetos
funcionais. Então, eu não quero discutir emprego,
quero discutir empregabilidade. A discussão que me
interessa é empregabilidade!
setor3 - Qual é a perspectiva das crianças
negras que nascem hoje? Existem várias pesquisas que
dizem que, pelo simples fato de nascer negro, você tem
duas vezes mais chances de ser pobre, não freqüentar
a escola, morar em casa sem abastecimento de água,
ou três vezes mais possibilidade de não ser alfabetizado...
Helio - As perspectivas que eu tenho são boas.
Eu acho que as crianças que estão nascendo hoje
- que no ano de 2030 terão 26 ou 25 anos -, terão
uma situação de vida muito melhor, porque os
avanços, digamos assim, os primeiros passos estão
sendo concretizados. Eu sou otimista.
setor3 – O senhor acredita que, daqui a 20 anos,
haverá uma redução das desigualdades?
Helio – Não, isso não. Só
com as políticas de ação afirmativa começando
em 2005, ao longo de 25 anos, conseguiremos uma redução
[das desigualdades raciais]. Em 20, 25 anos, você reduz
de forma significativa as desigualdades raciais. Assim, não
serão mais necessárias essas ações.
E sim outras.
setor3 – O senhor imagina quais outras?
Helio - São estas que eu levantei, não
são outras. São políticas massivas de
inclusão que envolvem todas as variáveis do
mundo econômico, não necessariamente ligadas
aos negros. Não é só para a população
negra. Um programa dessa magnitude impede o aumento da dívida
externa. Mas o volume de investimento requerido [para o desenvolvimento
integral] é enorme, não há recursos dessa
monta, como coloco em meu livro. E aí, o governo vai
ter que discutir a dívida externa e interna e renegociá-las.
Nisso cabe uma discussão muito mais ampla.
setor3 - O senhor acredita que a instituição
do dia 20 de novembro como feriado municipal em São
Paulo representa um avanço para a causa negra?
Helio - Sim. Você só muda após
uma reflexão. E no dia 20, você reflete sobre
a realidade negra do Brasil. A consciência negra é
isso: a reflexão para todos sobre a posição
negra no Brasil.
LAURA GIANNECCHINI
do site Setor3
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