HOME | COLUNAS | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS
 
 

Medo
28/07/2004
Violência é incorporada à rotina de professores cariocas

A mensagem ao telefone é curta e grossa: “É bom fechar porque o bagulho vai ficar sinistro.” Os funcionários de muitas escolas públicas em Bangu, Senador Camará e Jabour, na zona oeste do Rio, já se habituaram a decodificar a linguagem do tráfico e a ceder. O aviso de que vai começar o tiroteio é claro, e a violência está muito próxima. Diversas instituições da região estão cercadas pelas favelas da Coréia, Rebu, Sapo, Sossego, Santo André, 48, Bicho Solto, Sandrá e Saidreira, envolvidas numa guerra entre duas facções criminosas desde o início de julho. Assim, mesmo às vésperas das férias de meio de ano, o clima entre alunos e professores não era de alegria, mas de medo.

“Falta segurança e condições para mantermos nossas atividades. O resultado disso tudo é que o rendimento escolar cai a cada ano, mas ninguém fala nada”, diz a professora Patrícia*. Segundo ela, a Coordenadoria Regional de Educação não autoriza seus funcionários a dar entrevistas, mas, cansados do clima de violência, alguns decidiram romper o silêncio e falaram ao Viva Favela.

Desde o final de semana passado, o conflito se agravou - e tem ido muito além das comunidades do Sapo, Rebu e Coréia, que têm aparecido nos jornais. Moradores dizem que a tomada de poder do tráfico aconteceu durante o jogo entre Brasil e Argentina, na final da Copa América.

Marta* afirma que o medo é comum entre os professores das quase 20 escolas municipais da região, que atendem mais de 16 mil alunos. As instituições são a Abraão Jabour, Rainha Fabíola, Jorge Jabour e Márcio Fernandes Pinheiro – do Jabour; Dias Martins, Ernesto Francisconi, Ariena Viana da Silva, Antônio Bandeira, Thomé de Souza, Engenheiro Pires do Rio e Antônio Evarisco de Moraes – de Senador Camará e Henrique da Silva Fontes, Presidente Wilson, Comenius, Leonardo, Presidente Médici, Amílcar Cabral, Collecchio e Júlio Caetano Horta Barbosa – em Bangu.

Ela conta que os tiroteios não têm hora para começar. “Quando somos surpreendidos no meio da aula temos que tentar manter a ordem mesmo com a bala comendo solta. É um inferno”, desabafa.

Mesmo antes da atual guerra, a situação já era crítica. Houve casos até em que a violência passou para o lado de dentro dos muros da escola. Em novembro passado, a própria Patrícia* teve que superar o medo e resolver um assunto delicado. Os alunos estavam tendo que fornecer folhas de seus cadernos a um rapaz do tráfico que volta e meia resolvia enrolar drogas na escola. “Mesmo que alguns estudantes estejam acostumados a essas cenas, por serem filhos de traficantes, a maioria ficava assustada. Tive que pedir gentilmente ao rapaz para ele fazer aquilo em outro lugar e expliquei que os alunos precisavam das folhas para as aulas. De início, ele resistiu, mas depois sumiu. Foi terrível”, diz.

Por vezes, os profissionais não têm tanta sorte. “Cada uma dessas escolas já sofreu ou sofre com a violência que vai desde o vandalismo a roubos e até seqüestro de funcionários, como aconteceu em abril com a diretora do colégio Presidente Wilson, em Bangu. Ela ficou 5h nas mãos dos bandidos”, lembra Marta.

A violência está tão incorporada à rotina que mães e funcionários costumam telefonar para a escola e perguntar qual o melhor caminho para ir à aula, sem precisar passar pelas favelas mais agitadas naquele dia. A professora Marta já se acostumou ao desespero das mães. “Quando as favelas estão em guerra, elas ligam pedindo para não liberarmos seus filhos até que a situação acalme ou, dependendo do caso, para liberar mais cedo. Já tivemos tardes em que nenhum aluno compareceu. Em outras, tivemos que suspender as aulas por até uma semana”, conta.

Ela mesma já cansou de atender telefonemas com ordens de traficantes. “Eu atendo com educação e explico que só posso fechar a escola depois que a última criança sair. E vou logo falando: ‘Vocês podem ter certeza de que assim que a última sair saímos também’”.

Com tudo isso, não é de admirar que muitos estudantes não consigam se concentrar na aula, preocupados com a família que ficou em casa ou no trabalho. Isso quando conseguem comparecer à escola. “A avaliação fica prejudicada”, diz Patrícia.

Marta fica ainda mais indignada diante da falta de políticas para resolver o problema. “Vejo autoridades falando coisas do tipo: ‘Professor que não denuncia o tráfico é conivente’, mas quando pedimos segurança a frase é: ‘Não podemos colocar guarda em área de risco porque não fazemos uso de armas pesadas.’ Então, penso: Mas, péra aí, eu sou professora de uma escola em área de risco, será que preciso de uma AR 15?!”, questiona. “Infelizmente a gente só consegue segurança por pouco tempo e depois de fazermos muito barulho. Aí mandam um policial que só fica poucas horas e depois vai embora até sumir de vez”, acrescenta.

"Não tenho peito de aço"
Sem segurança, os professores criam estratégias para se proteger. “No fim do expediente, assim que a gente acaba de usar uma sala, tranca logo porque qualquer coisa é só sair", diz Marta. Os responsáveis por escolas vizinhas a terrenos baldios procuram mantê-los capinados para que não sirvam de esconderijo para os traficantes. Muros agora substituem as grades que antes cercavam certas escolas. Se não impede, pelo menos diminui a circulação de gente do ‘movimento’ pela instituição. "O ideal seria termos segurança da PM ou da guarda municipal com uma ronda ostensiva. Afinal não temos peito de aço”, diz Marta.

Outra alternativa, na opinião de Marta, seria ver o espaço da escola utilizado por organizações não governamentais e atividades sociais. “Temos um projeto de creche aprovado para ocupar os fundos da escola que não saiu até agora por falta de verba. Conclusão: o espaço ocioso serve para os bandidos da área. E isso não é exagero. Já encontramos cobertores, éter e projéteis no quintal, como se ali fosse um posto de vigilância de traficantes durante a madrugada. Em outra ocasião, nosso portão foi arrombado e fizeram um baile funk no espaço. No dia seguinte, a escola estava imunda. Sorte que era recesso escolar”, conta.

A professora Denise*, que mora no próprio bairro da escola na qual trabalha, também já passou por vários sufocos. “Já tive minha sala invadida por um homem que se aproximou dizendo que era do movimento, um traficante que queria apenas comer a merenda da escola. Gelei e tentei explicar que não tínhamos nada naquele dia. Assim que ele saiu, agradeci a Deus por estar viva”, lembra.

Mas a história não terminou ali. Minutos mais tarde, o homem voltou acompanhado. “O segundo traficante estava ainda mais nervoso, olhos vermelhos, gritando: ´Qual é, tia, libera a merenda pra gente, aí. Tá cheia de marra.` Tentei explicar que não havia comida, mas ele parecia drogado demais para entender. A minha sorte é que o primeiro traficante conseguiu convencê-lo de que eu não tinha culpa”, diz.

Não foi o único episódio de medo para Denise, mas lhe deixou conseqüências sérias. “Tive que tirar licença e só consegui sair de casa novamente dois meses depois. Não saía nem para pôr os pés no portão. A gente desenvolve um pânico total. Quando ouço qualquer barulho já fico preocupada observando se é tiro ou não”, fala.

Para quem vive na região a situação é ainda mais complicada. “Moro na Faixa de Gaza, isto é, entre duas favelas e já não agüento mais ter minha vida moldada pelo medo. Nos dias de conflito, durmo na cozinha com meus dois filhos e o cachorro para nos protegermos dos tiros. Isso me revolta”, desabafa a professora Tânia*. Ela mora na subida da favela Santo André e já aprendeu a saber quando a “chapa tá quente”.

“Primeiro se ouve o som dos tiros de pistola – que são da polícia –, depois começam os barulhos mais altos de fuzil e ponto 30, que é a reação dos bandidos”, diz. Os sinais de que a poeira baixou também vêm dos moradores. “Somos nós que ligamos para a escola para avisar que a barra está limpa. A gente percebe não só pelos tiros que diminuem, mas também pelos bares que começam a reabrir, as crianças que voltam a brincar nas ruas e as kombis a circular”, explica Tânia. “Eles são o nosso termômetro”, confirma Marta.

Marta ressalta que a situação piorou depois que houve um grande tiroteio numa escola em fevereiro de 2002. A professora Denise lembra que mesmo antes disso, em janeiro daquele mesmo ano, um menino foi morto no pátio de uma das instituições. “Era período de recesso escolar. Homens armados entraram na escola e assassinaram um dos meninos que estava usando drogas. Ele era um ex-aluno e no momento trabalhava para o tráfico”, lembra.

No histórico violento de uma escola chega a constar um grande assalto com seqüestro. O caso repercutiu na mídia: em pleno período de matrícula, dois homens armados entraram e começaram a assaltar pais, funcionários e até os trabalhadores que estavam realizando uma obra na escola. Levaram o carro do engenheiro e dois operários como reféns. "O cúmulo aconteceu quando o pessoal foi à delegacia prestar queixa e os policiais agiram como se fossem malucos e exagerados. É triste ver a banalização de toda essa violência”, fala a professora Helena*.

No mês seguinte, professores e funcionários tiveram que deitar no chão das salas de aula e corredores por conta de um tiroteio. Na guerra entre bandidos, alguns deles tentaram escapar pulando para o interior de outra escola. E o pátio virou campo de batalha, com feridos e mortos.

Marta sabe que no interior das escolas é preciso ter cautela mesmo em tempos de calmaria. “Há alunos que trabalham para o tráfico, filhos de pais e até mães envolvidos; por isso, temos que ter cuidado com aquilo que a gente diz. Sei que nem os líderes comunitários escapam. Por várias vezes já fui jurada de morte por alunos, mas dentro da escola temos que driblar um pouco o medo e tentar manter a autoridade”, fala.

A preocupação dela e dos demais professores é constante. “A gente pensa e mede as palavras antes de dizer alguma coisa. Também não vou mais de carro para a escola e procuro não me expor muito. Entro, trabalho e só saio na hora de ir embora, mas mesmo assim sei que eles sabem da minha vida toda. Conhecem nossa família e sabem dos nossos horários. Por várias vezes fui surpreendida por marginais que queriam saber quem era a pessoa que veio me trazer aqui ou coisa parecida. E tive que dar explicações a um homem, jurando que meu marido não é policial”, conta Marta.

Ela lamenta que além de todos os problemas que vive a educação no país, ela seja ainda afetada diretamente pela falta de segurança. “Isso abala uma instituição antes admirada e respeitada. As escolas públicas que na minha época eram exemplos, hoje estão enfraquecidas pelo medo que muitas vezes nos impede de desenvolver com tranqüilidade o nosso trabalho”, finaliza. Procurada pelo Viva Favela, a Secretaria Municipal de Educação não se posicionou sobre o assunto.

Todos os nomes são fictícios, a pedido dos entrevistados.


VILMA HOMERO
do site Viva Favela

   
 
 
 

NOTÍCIAS ANteriores
28/07/2004 Ministérios vão propor centros para combater exclusão digital
27/07/2004
Projeto ameaça preservação em área urbana
27/07/2004
Falta de segurança mata mais que álcool e drogas juntos
27/07/2004 Pessoas fabricam armas em casa para levar indenização
27/07/2004
Consumo de energia será critério para ter direito à tarifa social em SP e MS
27/07/2004 Saúde e educação ganham acordo
26/07/2004 Acesso à escola não impede trabalho na rua
26/07/2004 18% das universidades já oferecem crédito privado
26/07/2004 Catadores equipam as carroças e atraem até ladrões
26/07/2004
Trabalhadores são escravizados em estados brasileiros