A mensagem ao telefone é curta e grossa: “É
bom fechar porque o bagulho vai ficar sinistro.” Os
funcionários de muitas escolas públicas em Bangu,
Senador Camará e Jabour, na zona oeste do Rio, já
se habituaram a decodificar a linguagem do tráfico
e a ceder. O aviso de que vai começar o tiroteio é
claro, e a violência está muito próxima.
Diversas instituições da região estão
cercadas pelas favelas da Coréia, Rebu, Sapo, Sossego,
Santo André, 48, Bicho Solto, Sandrá e Saidreira,
envolvidas numa guerra entre duas facções criminosas
desde o início de julho. Assim, mesmo às vésperas
das férias de meio de ano, o clima entre alunos e professores
não era de alegria, mas de medo.
“Falta segurança e condições para
mantermos nossas atividades. O resultado disso tudo é
que o rendimento escolar cai a cada ano, mas ninguém
fala nada”, diz a professora Patrícia*. Segundo
ela, a Coordenadoria Regional de Educação não
autoriza seus funcionários a dar entrevistas, mas,
cansados do clima de violência, alguns decidiram romper
o silêncio e falaram ao Viva Favela.
Desde o final de semana passado, o conflito se agravou -
e tem ido muito além das comunidades do Sapo, Rebu
e Coréia, que têm aparecido nos jornais. Moradores
dizem que a tomada de poder do tráfico aconteceu durante
o jogo entre Brasil e Argentina, na final da Copa América.
Marta* afirma que o medo é comum entre os professores
das quase 20 escolas municipais da região, que atendem
mais de 16 mil alunos. As instituições são
a Abraão Jabour, Rainha Fabíola, Jorge Jabour
e Márcio Fernandes Pinheiro – do Jabour; Dias
Martins, Ernesto Francisconi, Ariena Viana da Silva, Antônio
Bandeira, Thomé de Souza, Engenheiro Pires do Rio e
Antônio Evarisco de Moraes – de Senador Camará
e Henrique da Silva Fontes, Presidente Wilson, Comenius, Leonardo,
Presidente Médici, Amílcar Cabral, Collecchio
e Júlio Caetano Horta Barbosa – em Bangu.
Ela conta que os tiroteios não têm hora para
começar. “Quando somos surpreendidos no meio
da aula temos que tentar manter a ordem mesmo com a bala comendo
solta. É um inferno”, desabafa.
Mesmo antes da atual guerra, a situação já
era crítica. Houve casos até em que a violência
passou para o lado de dentro dos muros da escola. Em novembro
passado, a própria Patrícia* teve que superar
o medo e resolver um assunto delicado. Os alunos estavam tendo
que fornecer folhas de seus cadernos a um rapaz do tráfico
que volta e meia resolvia enrolar drogas na escola. “Mesmo
que alguns estudantes estejam acostumados a essas cenas, por
serem filhos de traficantes, a maioria ficava assustada. Tive
que pedir gentilmente ao rapaz para ele fazer aquilo em outro
lugar e expliquei que os alunos precisavam das folhas para
as aulas. De início, ele resistiu, mas depois sumiu.
Foi terrível”, diz.
Por vezes, os profissionais não têm tanta sorte.
“Cada uma dessas escolas já sofreu ou sofre com
a violência que vai desde o vandalismo a roubos e até
seqüestro de funcionários, como aconteceu em abril
com a diretora do colégio Presidente Wilson, em Bangu.
Ela ficou 5h nas mãos dos bandidos”, lembra Marta.
A violência está tão incorporada à
rotina que mães e funcionários costumam telefonar
para a escola e perguntar qual o melhor caminho para ir à
aula, sem precisar passar pelas favelas mais agitadas naquele
dia. A professora Marta já se acostumou ao desespero
das mães. “Quando as favelas estão em
guerra, elas ligam pedindo para não liberarmos seus
filhos até que a situação acalme ou,
dependendo do caso, para liberar mais cedo. Já tivemos
tardes em que nenhum aluno compareceu. Em outras, tivemos
que suspender as aulas por até uma semana”, conta.
Ela mesma já cansou de atender telefonemas com ordens
de traficantes. “Eu atendo com educação
e explico que só posso fechar a escola depois que a
última criança sair. E vou logo falando: ‘Vocês
podem ter certeza de que assim que a última sair saímos
também’”.
Com tudo isso, não é de admirar que muitos
estudantes não consigam se concentrar na aula, preocupados
com a família que ficou em casa ou no trabalho. Isso
quando conseguem comparecer à escola. “A avaliação
fica prejudicada”, diz Patrícia.
Marta fica ainda mais indignada diante da falta de políticas
para resolver o problema. “Vejo autoridades falando
coisas do tipo: ‘Professor que não denuncia o
tráfico é conivente’, mas quando pedimos
segurança a frase é: ‘Não podemos
colocar guarda em área de risco porque não fazemos
uso de armas pesadas.’ Então, penso: Mas, péra
aí, eu sou professora de uma escola em área
de risco, será que preciso de uma AR 15?!”, questiona.
“Infelizmente a gente só consegue segurança
por pouco tempo e depois de fazermos muito barulho. Aí
mandam um policial que só fica poucas horas e depois
vai embora até sumir de vez”, acrescenta.
"Não tenho peito de aço"
Sem segurança, os professores criam estratégias
para se proteger. “No fim do expediente, assim que a
gente acaba de usar uma sala, tranca logo porque qualquer
coisa é só sair", diz Marta. Os responsáveis
por escolas vizinhas a terrenos baldios procuram mantê-los
capinados para que não sirvam de esconderijo para os
traficantes. Muros agora substituem as grades que antes cercavam
certas escolas. Se não impede, pelo menos diminui a
circulação de gente do ‘movimento’
pela instituição. "O ideal seria termos
segurança da PM ou da guarda municipal com uma ronda
ostensiva. Afinal não temos peito de aço”,
diz Marta.
Outra alternativa, na opinião de Marta, seria ver
o espaço da escola utilizado por organizações
não governamentais e atividades sociais. “Temos
um projeto de creche aprovado para ocupar os fundos da escola
que não saiu até agora por falta de verba. Conclusão:
o espaço ocioso serve para os bandidos da área.
E isso não é exagero. Já encontramos
cobertores, éter e projéteis no quintal, como
se ali fosse um posto de vigilância de traficantes durante
a madrugada. Em outra ocasião, nosso portão
foi arrombado e fizeram um baile funk no espaço. No
dia seguinte, a escola estava imunda. Sorte que era recesso
escolar”, conta.
A professora Denise*, que mora no próprio bairro
da escola na qual trabalha, também já passou
por vários sufocos. “Já tive minha sala
invadida por um homem que se aproximou dizendo que era do
movimento, um traficante que queria apenas comer a merenda
da escola. Gelei e tentei explicar que não tínhamos
nada naquele dia. Assim que ele saiu, agradeci a Deus por
estar viva”, lembra.
Mas a história não terminou ali. Minutos mais
tarde, o homem voltou acompanhado. “O segundo traficante
estava ainda mais nervoso, olhos vermelhos, gritando: ´Qual
é, tia, libera a merenda pra gente, aí. Tá
cheia de marra.` Tentei explicar que não havia comida,
mas ele parecia drogado demais para entender. A minha sorte
é que o primeiro traficante conseguiu convencê-lo
de que eu não tinha culpa”, diz.
Não foi o único episódio de medo para
Denise, mas lhe deixou conseqüências sérias.
“Tive que tirar licença e só consegui
sair de casa novamente dois meses depois. Não saía
nem para pôr os pés no portão. A gente
desenvolve um pânico total. Quando ouço qualquer
barulho já fico preocupada observando se é tiro
ou não”, fala.
Para quem vive na região a situação
é ainda mais complicada. “Moro na Faixa de Gaza,
isto é, entre duas favelas e já não agüento
mais ter minha vida moldada pelo medo. Nos dias de conflito,
durmo na cozinha com meus dois filhos e o cachorro para nos
protegermos dos tiros. Isso me revolta”, desabafa a
professora Tânia*. Ela mora na subida da favela Santo
André e já aprendeu a saber quando a “chapa
tá quente”.
“Primeiro se ouve o som dos tiros de pistola –
que são da polícia –, depois começam
os barulhos mais altos de fuzil e ponto 30, que é a
reação dos bandidos”, diz. Os sinais de
que a poeira baixou também vêm dos moradores.
“Somos nós que ligamos para a escola para avisar
que a barra está limpa. A gente percebe não
só pelos tiros que diminuem, mas também pelos
bares que começam a reabrir, as crianças que
voltam a brincar nas ruas e as kombis a circular”, explica
Tânia. “Eles são o nosso termômetro”,
confirma Marta.
Marta ressalta que a situação piorou depois
que houve um grande tiroteio numa escola em fevereiro de 2002.
A professora Denise lembra que mesmo antes disso, em janeiro
daquele mesmo ano, um menino foi morto no pátio de
uma das instituições. “Era período
de recesso escolar. Homens armados entraram na escola e assassinaram
um dos meninos que estava usando drogas. Ele era um ex-aluno
e no momento trabalhava para o tráfico”, lembra.
No histórico violento de uma escola chega a constar
um grande assalto com seqüestro. O caso repercutiu na
mídia: em pleno período de matrícula,
dois homens armados entraram e começaram a assaltar
pais, funcionários e até os trabalhadores que
estavam realizando uma obra na escola. Levaram o carro do
engenheiro e dois operários como reféns. "O
cúmulo aconteceu quando o pessoal foi à delegacia
prestar queixa e os policiais agiram como se fossem malucos
e exagerados. É triste ver a banalização
de toda essa violência”, fala a professora Helena*.
No mês seguinte, professores e funcionários
tiveram que deitar no chão das salas de aula e corredores
por conta de um tiroteio. Na guerra entre bandidos, alguns
deles tentaram escapar pulando para o interior de outra escola.
E o pátio virou campo de batalha, com feridos e mortos.
Marta sabe que no interior das escolas é preciso ter
cautela mesmo em tempos de calmaria. “Há alunos
que trabalham para o tráfico, filhos de pais e até
mães envolvidos; por isso, temos que ter cuidado com
aquilo que a gente diz. Sei que nem os líderes comunitários
escapam. Por várias vezes já fui jurada de morte
por alunos, mas dentro da escola temos que driblar um pouco
o medo e tentar manter a autoridade”, fala.
A preocupação dela e dos demais professores
é constante. “A gente pensa e mede as palavras
antes de dizer alguma coisa. Também não vou
mais de carro para a escola e procuro não me expor
muito. Entro, trabalho e só saio na hora de ir embora,
mas mesmo assim sei que eles sabem da minha vida toda. Conhecem
nossa família e sabem dos nossos horários. Por
várias vezes fui surpreendida por marginais que queriam
saber quem era a pessoa que veio me trazer aqui ou coisa parecida.
E tive que dar explicações a um homem, jurando
que meu marido não é policial”, conta
Marta.
Ela lamenta que além de todos os problemas que vive
a educação no país, ela seja ainda afetada
diretamente pela falta de segurança. “Isso abala
uma instituição antes admirada e respeitada.
As escolas públicas que na minha época eram
exemplos, hoje estão enfraquecidas pelo medo que muitas
vezes nos impede de desenvolver com tranqüilidade o nosso
trabalho”, finaliza. Procurada pelo Viva Favela, a Secretaria
Municipal de Educação não se posicionou
sobre o assunto.
Todos os nomes são fictícios, a pedido dos
entrevistados.
VILMA HOMERO
do site Viva Favela
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