Difícil
prever quantas tragédias poderiam ser evitadas se o
país conseguisse diminuir o abuso de álcool
Técnicos em saúde e segurança pública
analisaram, no ano passado, amostras de sangue de 1.073 pessoas
assassinadas na cidade de São Paulo: 41% delas indicavam
presença de álcool. Esse mesmo teste já
tinha sido feito em 2004, apresentando resultado quase idêntico
(45%).
Um dos responsáveis pela pesquisa, o sociólogo
Túlio Khan estima que o álcool tenha sido ingerido,
na mesma proporção, pelos agressores. "É
comprovado cientificamente que bebida e crime andam juntos",
diz.
Em 2004, foram investigadas, também na cidade de São
Paulo, 454 vítimas de acidentes fatais de trânsito.
Desse grupo, 194 haviam tomado o equivalente a duas latas
de cerveja ou três copos de chope. É apenas um
detalhe do derramamento de sangue no asfalto - e este é
o debate que importa na proposta do Ministério da Saúde,
revelada na semana passada, de restringir a publicidade de
cerveja.
Cálculos produzidos por uma entidade de pesquisa do
governo federal (Ipea) indicam que, anualmente, o custo dos
acidentes nas estradas (não se computaram as cidades)
é de R$ 22 bilhões.
Isso não é nada perto da pior das estatísticas:
30 mil mortos e cerca de 100 mil feridos, muitos dos quais,
a julgar pelas pesquisas, afetados pela bebida.
Difícil prever quantas tragédias poderiam ser
evitadas se o país conseguisse diminuir o abuso de
álcool. Há algumas pistas.
Desde 1999, houve uma queda de 54,7% no número de homicídios
dolosos no Estado de São Paulo, tendência que
permanece neste ano. Parte dessa queda se deve à região
metropolitana, onde, em alguns municípios e bairros,
antecipou-se o horário de fechamento dos bares.
Evidentemente, as causas dos assassinatos são muito
mais complexas. Mas é inquestionável que, nesse
derramamento de sangue, a glamurização publicitária
da bebida, associada ao sucesso, ao charme sexual e até
à saúde, faz parte do problema. São mínimos
os limites para os anúncios de cerveja, protegidos
por um forte lobby empresarial.
Países desenvolvidos vêm estabelecendo políticas
restritivas para o anúncio de bebidas alcoólicas,
inclusive cerveja, preocupados com a saúde da população
em geral e dos jovens em particular. Tais restrições
ocorrem pela simples e óbvia valorização
da vida.
Uma série de estudos demonstra que, no Brasil, os jovens
bebem cada vez mais e, ainda por cima, começam mais
cedo. É simplesmente risível imaginar que eles
teriam mais cautela apenas ouvindo aquela rápida frase
de alerta depois do sensualíssimo anúncio com
mulheres estupendas.
É uma covardia: de um lado, os milhões gastos
para relacionar sensualidade, beleza e juventude à
bebida e, de outro, os chatos, apresentados como moralistas,
com suas estatísticas. Não é uma questão
de moralismo. É bélica.
Levantamento de opinião divulgado na semana passada
mostrou, mais uma vez, que a violência se transformou
na maior preocupação dos brasileiros, superando
o desemprego. Vemos o Rio, impotente, pedindo a ajuda das
Forças Armadas. Os homicídios se transformaram,
em regiões metropolitanas, na principal causa de morte
entre os jovens. Há uma imensa parcela de jovens que
não estudam nem trabalham.
Vivem em bairros cujos exemplos de sucesso são os marginais.
Dos 50 milhões de brasileiros entre 15 e 29 anos, cerca
de 15 milhões estão nas regiões metropolitanas;
entre os mais pobres, a taxa de desemprego chega aos 70%.
Nesse ambiente de desagregação, não é
exatamente saudável passarmos a mensagem de que o álcool
é um caminho para o sucesso. Essa é mais uma
entre tantas irresponsabilidades educacionais brasileiras-
algumas se traduzem em notas de matemática ou português,
outras em sangue.
PS- Nós, jornalistas, sempre gostamos de apontar
o dedo para os governantes. Nesse caso da bebida alcoólica
vamos ter de avaliar até que ponto os veículos
de comunicação, beneficiários dos anúncios,
deveriam tomar a dianteira (a exemplo do que muitos fizeram
em relação ao fumo) e defender a imposição
de limites à publicidade de cerveja. Somos parte do
problema: os empresários fazem pressão e o governo
cede, mas somos nós que divulgamos o anúncio.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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