Tião
escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos
e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve
à noite, num bloco de papel, sentado na laje
Só não afundou de vez porque tinha um prazer
de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças.
Sabia que um dia seria escritor
Um pedaço da história de vida de Sebastião
Nicodemes está na capa do livro que ele vai lançar
na próxima sexta-feira. A capa é feita de papelão
encontrado na rua, ilustrada por filhos de catadores de papel.
"É meu primeiro livro", orgulha-se o ex-catador
de papel. Os textos foram escritos em cima de uma laje, onde
Tião alugou um pequeno quarto. "Fico olhando o
céu, e a inspiração vai aparecendo. É
como se eu ainda morasse na rua." Ex-morador de rua,
ele já consegue pagar o aluguel daquele quarto porque
faz bicos artísticos.
Tião produz bonecos com papel reciclado, com os quais
conta histórias para crianças, ajuda em roteiros
de filmes e documentários, e já escreveu o texto
de uma peça, intitulada "Diário de um Carroceiro",
apresentada no ano passado no Teatro Fábrica. Está
conseguindo, agora, lançar "Cátia, Simone
e outras Marvadas", por causa de uma experiência
produzida na última Bienal.
Um grupo de artistas resolveu apoiar a edição
de livros produzidos por filhos de catadores de papel e seus
filhos - assim surgiu a Edições Dulcinéia
Catadora. São sempre cem exemplares, todos artesanais
e com desenhos diferentes. "O que queremos é estimular
o prazer de criar", diz Lúcia Rosa, uma das artistas
envolvidas no projeto.
Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos
autobiográficos e histórias inspiradas no que
vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel,
sentado na laje acoplada ao cubículo, no Brás.
"Eu me sinto maior sentindo o Universo". A sensação
de grandeza também tem um motivo concreto: há
três meses está conseguindo pagar o aluguel daquele
quarto. Até dormia em abrigos públicos, depois
de sair da rua. "Não gostava de viver de favor."
Tal sensação de grandeza ajudou-o a recordar
e colocar no papel suas decepções, inclusive
amorosas.
Migrante, Tião tinha emprego em São Paulo.
Mas adoeceu e, quando voltou do hospital, nem sequer tinha
lugar onde morar. A frustração chamou a bebida
e, assim, instalou-se um círculo vicioso. Para sobreviver,
viveu nas ruas que cercavam o Mercado Municipal. A dor que
manteve guardada foi não ter recebido, no hospital,
a visita de amigos. Nem da mulher - uma das "marvadas"
- com quem estava noivo e com quem pensava que iria casar.
"Parece que tudo desabou em segundos." Tião
só não afundou de vez porque tinha um prazer
de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças.
Sabia que -mas não sabia quando- um dia seria um escritor.
"Só o que não imaginei é que, todas
as noites, teria o prazer de adormecer ao ar livre."
Ex-morador
de rua vai estrear peça de teatro
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
|