O presidente Luiz Inácio
Lula da Silva quer reunir em Nova York, pouco antes da abertura
da Assembléia Geral da ONU, em setembro, mais de 30
chefes de Estado e de governo para discutir a arrecadação
de dinheiro para um fundo mundial de combate à fome
e à pobreza. A reunião, se ocorrer na dimensão
que Lula deseja, poderá deslanchar a criação
do fundo. O jornal O Globo obteve com exclusividade uma gravação
do encontro reservado que Lula teve na sexta-feira, em Genebra,
com o presidente da França, Jacques Chirac, o presidente
do Chile, Ricardo Lagos, e o secretário-geral da ONU,
Kofi Annan. Depois de propor a reunião em Nova York,
o presidente disse:
"Precisamos, na Assembléia Geral da ONU, fazer
um chamamento, como fizemos em Monterrey (no México,
na reunião da Alca). Quem sabe levar alguns milhares
de famintos lá para as pessoas se lembrarem de que
existem e que estão perambulando..."
Várias idéias foram lançadas no ar durante
a conversa de cerca de uma hora entre os quatro. Nada de concreto
foi acertado, mas ficou clara a disposição de
todos para buscar saídas. O presidente Chirac, revelou
a todos uma conversa que teve com Lula sobre a experiência
no Brasil com a CPMF. Empolgado com a idéia, disse:
"Podemos imaginar uma taxa sobre cheques, sobre transações
financeiras, comércio de armamentos. Não quero
prejulgar nada. O fato é que vamos encontrar um meio".
O presidente francês convidou Brasil, Chile e a ONU
para participarem de uma reunião em Paris com os ingleses
“daqui a pouco” para discutir uma proposta britânica.
Convidou o Brasil também para participar do grupo técnico
que ele acaba de criar em Paris para estudar a taxação
sobre o comércio de armas e outras propostas.
Lula abriu a reunião assim:
" Temos capacidade de gerir corretamente estes fundos.
Proposta para o fundo é o que não falta".
Depois de lembrar da meta estabelecida pela ONU para que
os países reduzam à metade, até 2015,
a fome no mundo, acrescentou:
"Se começarmos agora teremos chances de cumprir.
Estou muito otimista com a possibilidade de fazer com que
isso se transforme em realidade. Se a ONU mantiver a disposição
que está mantendo, com pessoas como o presidente Chirac,
como Lagos, assumindo esta bandeira fico mais otimista na
capacidade de arrecadação".
Lula chama presidentes de companheiros
Mantendo seu estilo, Lula se dirigiu aos demais presidentes
como companheiros e passou a palavra para o secretário-geral
da ONU. Kofi Annan disse que havia gostado muito do fato de
o tema da fome e da pobreza ter sido levantado tão
cedo, “no início do ano”. E, numa alusão
à crise do Iraque, que dominou a agenda no mundo em
2003, queixou-se do foco excessivo em questões de guerra
e paz:
"Focalizamos demais questões de guerra e paz
no ano passado. Espero que em 2004 possamos reequilibrar a
agenda internacional. Para mim é um estímulo
ver que vocês estão incluindo isso na agenda.
Isso reforça metas acordadas e aceitas pelos governos".
Annan alertou a todos para problemas que terão com
alguns governos que insistem em ajudar no combate à
fome doando alimentos, e não dinheiro. Ninguém
mencionou nomes, mas foi uma referência aos Estados
Unidos.
"Alguns governos dão ajuda em alimentos no lugar
de dinheiro. Teremos esse tipo de concorrência, ou melhor,
esse tipo de discussão com alguns governos que acreditam
que já estão dando milhões sob forma
de alimentos aos pobres e, portanto, não deveriam fazer
contribuições financeiras", disse.
O secretário-geral da ONU concordou com Lula: a tarefa
de levantar fundos não será fácil e exigirá
muito esforço.
"Em me vejo estimulado pelo fato de que o senhor (Lula)
não limita esse levantamento de recursos a governos.
Se compreendo corretamente, o setor privado também
tem contribuição a fazer", disse Annan.
Chirac agradeceu calorosamente a Lula por sua iniciativa
e começou a fazer cálculos. Comentou que os
americanos são responsáveis por metade dos US$
900 bilhões gastos com equipamento militar no mundo.
Citou o Produto Interno Bruto (PIB) mundial: US$ 33 trilhões,
acrescentando que o comércio internacional movimenta
US$ 8 trilhões, “sem contar com transações
financeiras”. E concluiu:
"Se estou citando estes números é para
dizer que nossos US$ 50 bilhões (necessários
para reduzir a fome) são uma vírgula no texto
que estamos escrevendo. Nem se vê! Em termos financeiros,
é praticamente inexistente".
Depois de perguntar a todos como poderiam avançar,
Chirac chamou de escândalo o fato de o Banco Mundial
ter reduzido os investimentos na produção agrícola
nos países pobres.
"A ajuda alimentar, muitas vezes, é um roubo.
Temos que dizer isso", disse Chirac.
O presidente francês se queixou da falta de coordenação
na assistência internacional e pediu a Annan que busque
coordenação melhor dentro da ONU. Chirac elogiou
Lula:
"O presidente Lula lançou uma operação
muito interessante que se chama Fome Zero. Uma coisa simples
que implica vontade política e funciona", disse
Chirac.
Citando as propostas que estão sendo lançadas
— a britânica, para taxação de transações
financeiras, por exemplo — concluiu:
"Isso justificaria a criação de um fundo
contra a fome sugerido pelo presidente Lula. Gostaria que
nossa reunião de hoje fosse o início de um processo.
A França tem a intenção de propor aos
nossos amigos americanos a discussão deste problema
na reunião do G-8 daqui a meses em Sea Island. Queremos
que o G-8 tenha a mesma iniciativa que Evian, com representantes
de países do Sul".
Lula contou a todos sobre uma conversa que teve com Chirac,
em que pediu para que ele convencesse o presidente George
W. Bush a repetir a fórmula de Evian, isto é,
convidar países emergentes, como o Brasil.
O presidente chileno, Ricardo Lagos, também falou
longamente, dando ênfase ao fato de que os países
pobres terão que fazer sua parte no esforço
para combate à fome, sob o risco de perderem credibilidade.
“O Brasil precisa é de um pouco de vergonha”
O presidente Lula retomou a palavra para dizer que,
às vezes, se assusta com a quantidade de pessoas passando
fome e foi franco ao se referir ao problema da corrupção
em governos africanos:
"A verdade é que o Brasil não precisa
de fundo, de dinheiro externo para resolver o problema da
sua fome. Precisamos é de um pouco de vergonha e disposição
política para fazer as coisas. Mas tem países
que, se não houver concretamente um fundo e uma espécie
de ajuda na aplicação dos fundos, vão
receber dinheiro e as coisas não vão ser resolvidas
porque tem países pobres onde os dirigentes são
ricos com contas bancárias gordas em outros países.
Isso não é possível", queixou-se
Lula, citando as contas milionárias que o ex-ditador
africano Mobuto mantinha em bancos no exterior, e também
as fortunas que circulam em paraísos fiscais.
DEBORAH BERLINK
Enviada especial do jornal O Globo a Genebra
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